“Tio Zózimo: O segredo da Mata do Araçu”

O que os olhos não veem, o coração não sente. Dona Tereza sabia.  Tio Zózimo e Altamiro ao lado do fogão a lenha. Logo cedo. Era batata. Estavam aprontando alguma.

Da janela, da casa de peroba-rosa, no alto da serra, os dois olhavam para o trecho de floresta no fundo do Vale do Araçu, meio a meio entre a Vitória do Alegre e o Alegre. Tereza, preparando os torremos, ressabiava. Será que vão tentar entrar lá de novo: Jão Ródrix já avisou dos perigos. Só vai levá-los lá quando cumprirem as 7 tarefas.

Canecas de café na mão. Bocas cheias do delicioso bolo de milho verde. Falavam baixinho. Tereza tentando ouvir. Estes dois já quebraram a cara querendo entrar naquele mato. Já se machucaram. Já se perderam lá dentro.  Mas os danados não desistem. Que que estão armando agora?

Em segredo, Altamiro sonhava entrar na mata para colher ovos de passarinhos secretos, diz que lá viviam. Queria criá-los. Vender caro para os colecionadores de Nova Yorque. Tio Zózimo fazia tempo desejava apanhar sementes de árvores, remédios antigos. Ia plantar, fazer pomar, ganhar muito dinheiro. Sonhava acordado.

Um não sabia dos planos do outro. O outro não sabia dos planos do um.  Jao Rodrix, um olho fechado, outro, meio aberto, sabia. Tinha angu debaixo daquele caroço. Quando alguém queria visitar a mata do Araçu algo suspeito pairava no ar. Pé atrás. 

Por modo de enrolar Tio Zózimo e Altamiro, tinha exigido. Cumprissem 7 tarefas. Já há dois anos, vinha este chove não molha. Tinham conseguido cumprir seis das obrigações. A última era encontrar o sino da Capela Bom Jesus.

Procuraram o tal sino em todos os lugares possíveis. Desacorçoavam. Paravam de procurar. Voltava a esperança. Ia assim, a coisa. Jão Ródrix só olhando o procedimento dos dois, observando o amadurecimento das frutas no pé. 

Só, muitos meses depois, percebeu. Tio Zózimo e Altamiro já não estavam tão ansiosos.  Jão Ródrix marcou a data. Uma visita ‘a mata. Agora iam saber o segredo. O porquê daquele trecho ter resistido. Tudo em volta, nenhuma árvore. Só plantações. E aquela área de mata. Intacta. Invencível.  O que seria? Qual o segredo?

Jão Ródrix recomendou. Banho de rio. Purgante uma semana antes. Jejum no dia marcado. Uma sexta-feira de quaresma que caísse bem na metade do mês de março.  Se quisessem, era assim. Quiseram.  Aceitaram.

Então, no dia marcado, os dois, Tio Zózimo e Altamiro, muito cheios de si, orgulho escorrendo pela tampa do chapéu, deram uma volta pela cidade. Todo todo, cada um. Percorreram as praças, as lojas, como se fossem os maiores maiorais.  Cheios de graça. Olhando as pessoas de cima pra baixo.

 Deu-lhes um último susto. Chegou 15 minutos depois do combinado e já foi descendo com seu embornal a tiracolo, pela trilha estreita. Os dois atrás, nem não falavam, só sentiam a brisa da manhã.  Jao Rodrix comentou, bom dar uma volta completa na mata para se livrarem das energias ruins. 
Assim, completaram os 360 graus do círculo, foram entrando na mata, escolhendo uma veredinha enviesada num ângulo obtuso. Agachados por causa dos espinhos. De lado, para superarem os cipós. Ou andando de gatinhas, devido as teias de aranhas ou as perigosas caixas de marimbondo de fogo.
Já estavam chegando na zona das grandes perobas e figueiras. Grandes. Os três para abraçar o tronco. Foi quando Jão Ródrix estacou. Para seguir daqui pra frente e entender o segredo da mata, cada um deve de pegar um mandruvá do palmital, e se cortar na veia aorta do braço esquerdo. O veneno do bicho se espalha pelo corpo. Era a ordem.

Devido ao veneno, sentiram o corpo amolecendo. A respiração enfraquecendo. Se encostando nas perobas. A vista, porém, pegava fogo. Farol de milha na selva. Via o que não se via.  Um cortejo lá e vem, tentou dizer Altamiro. De indígenas. Pintados. Coloridos. Instrumentos musicais tocando o solo. Duas filas. Entre as duas o cacique e um jovem branco, com trajes europeus, iguais do livro da Escolinha Duque de Caxias.

Em seguida, chegavam as mulheres. Traziam, aos ombros, uma longa rede pesada. Os guerreiros preparando uma cova. Músicas. Choros. Flechas disparadas para o alto das copas das figueiras.  Depositaram o corpo. Cercaram o túmulo com pedras. E partiram como chegaram. Na mesma ordem.
 Duas horas para passar o efeito do veneno do mandruvá. As veias inflamadas se curando. O sangue, chamas se apagando.  Corpos se recuperando. Poucas forças para se levantarem. Caminhavam. Dificuldades até a trilha. Pele toda marcada. Picadas de abelhas venenosas. Espinhos. Pedras.
Chegaram a Casa de Dona Tereza moídos de fome e sede. O estômago forrado, costelinhas de porco, torresmos, abobrinhas e couves. Mas a danada da curiosidade não passava. Tio Zózimo e Altamiro queriam entender tudo o que tinham visto na mata.

Jão Ródrix, espiando o fundo da caneca de café, explicou. Tinham visto o ritual do enterro do Xamã da tribo que tinha habitado e dominado do Araçu ao Pirapó. O Xamã ofertava a vida em sacrifício, em troca da proteção eterna da floresta.

Estranhei mais foi a presença do moço banco, com roupas de europeu, entre os índios, disse Tio Zózimo, medroso, esfarelando um naco de bolo de fubá, evitando os olhares severos de Dona Tereza.
Sem querer dar uma de sabidão, nem se mitidar, Jão Ródrix contou uma lenda. Um jovem europeu, caçador de índios, amigo dos bandeirantes, ao chegar a nossa região, ficou tão encantado com a força da natureza que mudou de lado. Abandonou a profissão. Passou a viver com os indígenas. Aprendendo. Ensinando. 

Alguns diziam até que seu nome seria Johanes Flavius. Mas, poucos dos primeiros moradores restaram na Região. Quase todos se mudaram. Agora o segredo da floresta pertence a vocês. Caso batam com a língua nos dentes, esta mata pode ser destruída rapidamente. E todos sacrifícios que os índios fizeram irão por água abaixo.

Dona Tereza sempre recordava . Naquele dia, Jão Ródrix foi se embora pra casa sem saber se realmente tinha feito o certo. Mas assumira o risco.

Anos depois, Jão Ródrix passava pela estrada via a mata lá. Firme, intacta, invencível. Sentia orgulho das lições da vida.