O menino fedorento

Faz uns cinco anos, eu embarcava no ônibus metropolitano. A fila de embarque se estendia pelo ponto improvisado na Praça Raposo Tavares, à frente da antiga rodoviária demolida, em Maringá. Tem um menino que fica zanzando ali pela praça (até hoje está lá). Anda descalço. Pés encardidos e cascudos. Viciado em crack. Deve ficar muitos dias sem tomar banho. Exala um mau cheiro insuportável.  

Ele, que mora em Sarandi, entrou no mesmo metropolitano em que embarquei, que faz a linha Maringá/Mandaguari. Criou uma confusão no ônibus. Sentou-se lá atrás. Ninguém queria ficar perto por causa do mau cheiro. Dois passageiros o xingavam e pediam ao motorista que o fizesse descer. Mas o motorista não os atendeu, e ele seguiu. 

Os dois continuaram a esbravejar. Fedorento. Imbecil. Podre. Cheiroso. De tanto ouvir xingamentos, o menino parecia indiferente e não esboçava qualquer reação. Fazia de conta que não ouvia. Sentou-se e começou a contar umas moedinhas, que ganhara ali na praça. 

A reação ao menino fedorento me fez pensar no nosso mau cheiro. O mau cheiro dele era perceptível. E o nosso? Diariamente, deparo com gente limpinha, cheirosa, que fede muito. Não sou religioso, mas aprecio um dito cristão: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia”. 

A cena revela que vivemos num mundo de ilusão. De “faz de conta”, onde está tudo bem. Não existem mazelas, dores e sofrimentos. O problema do outro não me diz respeito. Os fones de ouvidos ajudam. Várias pessoas naquele ônibus os usavam e tapavam o nariz.  Assim, nos ausentamos. Apenas meu corpo físico está presente. Nada que acontece ali me interessa. Meu mundo é outro. Distante.

Falei do cristianismo, mas o budismo também nos dá um exemplo. Sidarta Gautama, o Buda, era um príncipe, que vivia preso em um castelo à custa dos pais. Não conhecera o mundo exterior. Inquieto, um dia pulou o muro da fortaleza e a primeira coisa que viu foi um andarilho estendido no chão. Um homem maltrapilho e doente. Aquilo lhe deu um choque de consciência, transformando-o. Daí em diante, ele virou Buda e seguiu um caminho de redenção. 

Nós, ao contrário do príncipe Sidarta, estamos imersos na vida, mas nem sempre a enxergamos. Um saudoso sábio amigo dizia que às vezes a gente vê, mas não enxerga. Segundo ele, há uma diferença entre ver e enxergar. Afirmava que ver é apenas estar presente; enxergar, não. Requer sentimento, contato, o porquê de estar ali.  Na sua singela reflexão há um fundo de verdade em se tratando dos fones de ouvido. Uma multidão presente, mas ausente, que vê, mas não enxerga.  

O menino fétido mostra o quanto somos impotentes. O fato de ele estar na rua é uma questão complexa. Mas não diz respeito apenas aos políticos. É um problema também nosso. Resolvê-lo, talvez, não consigamos. Mas ao menos precisamos enxergá-lo. Assim, constataremos que há vida além dos fones de ouvido. 

O mau cheiro do menino é notável. Ele precisava de ajuda. De imediato, nada que um bom banho não dê jeito. Mas o nosso “mau cheiro” pode ser muito pior porque está incrustado na alma. Não é qualquer sabão que tira. O ônibus chegou a Sarandi. O fedorento desceu. Nós, límpidos passageiros, respiramos aliviados. Estamos livres daquele mau cheiro. Felizes, continuamos em nosso mundo de “faz de conta”. 

Que em 2019 possamos refletir na difícil tarefa de enxergar os “meninos fedorentos”, ali, ao nosso lado.