Tio Zózimo: O cavalo do namorado da vizinha

Relógio que atrasa não adianta. Tio Zózimo tinha que tomar uma decisão até o anoitecer. De noitinha não é bom se arriscar.

Cuidar do cavalo alazão do Araripe. Enquanto este ia pra São Paulo buscar uma peça de casimira para seu terno de casamento. Podia ficar por lá, mesmo.

Tinha momento que aceitava. Depois se irritava. Onde já se viu? A família fazia pressão. Os amigos, também. Isso que é de entornar o caldo de cana dos miolos quentes.

Será que ninguém mais se lembrava? Tio Zózimo e Doralice. Nas matines. Na sala de aula. Nas noites do Aggena Som. Sempre juntos.

Foi muito tempo depois que Araripe chegou. Atropelando com seu cavalão. Se instalou no coração de Dora. Cavalo aprumado. Argolas douradas no peitoral. Sela inglesa. Esmalte nos cascos. Logo eu que gostava de histórias de raptos de donzelas em castelos.

Araripe nem desmontava do alazão. Chegava cedo no sábado. Na casa dela. Ficava mesmo montado. À Janela. E ela debruçada no parapeito. Isto lá e jeito de tratar uma moça-namorada?

Tio Zózimo foi se retirando do campo de batalha como um soldado raso. Amargurado. Fingindo que não via a derrota. Disfarçar uma lágrima é uma arte bizantina.

Instalado o namoro de Araripe mais Dora, Tio Zózimo cortava caminho, disfarçava o olhar. Mudasse de calcada se quisesse paz. Com os trabalhos na Kombi amarela, se esquecia e remediava dos amores passados. Pra frente é que se anda.

Estava até tranquilo da vida. Recuperado. Conformado. Se esforçava para conhecer todas as Vendas da Rua Piquiri. Tinha até conseguido conquistar do proprietário da Farinheira a confiança para entregar fubá mimoso, canjica, biju de mandioca pra cidade toda. O trabalho sem parar não deixa ninguém demonstrar as tristezas que traz nos olhos e no coração. 

E a vida estava indo assim, neste galope. Andando nos eixos. Quando tiveram a ideia. A sugestão. A falta de tato. Não é mesmo uma brincadeira pedir pra Tio Zózimo cuidar do cavalo enquanto o noivo de Dora viaja?
A cabeça de Tio Zózimo. Uma roda gigante. A cada parada da Kombi, mudava de opinião. Na Casa Dias, cuidava. Na Casa Cruzeiro, não aceitava. O pessoal até percebia a situação. Voltava logo pro batente.
Quando decidiu que não ia cuidar do cavalo de Araripe, ficou com medo dos olhos de Dora. Não vou aguentar aquele olhar. E se ela pedir? Debochando? Como me seguro? Como mantenho a calma?

Estava neste vai-não-vai, neste chove-não-molha, quando chegou a notícia. Altamiro trazia. O cavalo de Araripe adoecera, de repente. Alívio. Tomara que seja grave.

Não precisava se preocupar mais, não. Araripe ia deixar o animal no veterinário. Aliviado. Tio Zózimo abraçou Altamiro. Até pagou um guaraná com pão com mortadela na padaria do Ralf. Mas, esta vida tem cada segredo, hein?

A guitarra do Rambo

Tio Zózimo parou a Kombi no meio da quadra. De um lado, a matriz em construção. De outro, a prefeitura. De madeira.

Nunca havia olhado a Avenida, assim. Confuso. Os bancos de peroba do Hotel Bandeirante aguardando as famílias dos pioneiros. A placa da Farmácia Paraná. O luminoso do Banco da Província. Pareciam exigir dele uma atitude. Por que não tinha contado que dera carona ao estranho? 

Estava vindo da Caixa São Pedro. Viu de longe. Antes da curva do Massambani. Um caminhante. Parecia cansado. Saltos dos sapatos gastos. Barra das calças arrastando no asfalto. Podia ter passado direto. 
O homem aceitou meio tímido a carona. Mas, já na altura do Dourados, no à vontade, começou a falar. Tio Zózimo receoso. Dava carona, demorava pra ganhar confiança. Só quando o distinto deu dicas de que conhecia a cidade, ficou mais calmo. Às vezes, a gente se descuida.

O sujeito falou dos filmes que assistia no Cine Ipiranga. Tio Zózimo ficou com um pé atrás. Falou das Lojas Riachuelo. Das Casas Buri. Foi ganhando confiança. Ele demonstrava que sabia. Que era da cidade. Mesmo assim, é melhor não fiar.

Mas quando o passageiro começou a citar pessoas, venceu a desconfiança de Tio Zózimo. Falou do Macarrão. Sobre os jogadores do MEC. Dos funcionários do Bamerindus. Do Seo Luizinho sem braço. Do Homem do Lobo. Do vereador que fazia discursos engraçados. 

Aí Tio Zózimo ficou no à vontade, mesmo. Confiou plenamente no infeliz. Tudo que o carona perguntava, respondia. Dava informações. Como é que podia ter desconfiado? A gente não é adivinho.

Que alegria quando o carona perguntou sobre a Venda do Sapatão. Sobre as explosões na pedreira. Sobre os torneios de futebol no campo do Ubirajara. Puxa! Ele sabia de tudo mesmo.

E quando ele perguntou se Tio Zózimo sabia o nome verdadeiro do Pirulito. O Pirulito? Todo mundo conhece. Por apelido. Mas, e o nome dele quem sabe? Acho que ninguém sabe.

Foi aí, o erro. O homem ganhou confiança. Total. Garrou fazer perguntas sobe o Rambinho. Como é que estava? Onde morava? Se trabalhava. Horário em que estudava.

Inocente, Tio Zózimo passou todas as informações pedidas. O Rambinho tinha sido simplesmente o guitarrista da banda que acompanhou o cantor Jerry Adriane quando este fez um show em Mandaguari. E por ter tocado tão bem, ganhara do cantor o tal instrumento. A guitarra.  Famosa.

A maior relíquia da memória musical da cidade. Todo mundo que entendia de música tinha que ver o tal instrumento. Guardado. Protegido em caixa de madeira, em cima do guarda-roupa, no quarto de Rambinho. Pois é, até da guitarra e do tal show o carona sabia. Como eu podia ter desconfiado?

Na venda do Gaé, o carona agradeceu, desceu e desapareceu. Tio Zózimo, mergulhado no trabalho, esqueceu-se dele. Bom poder ajudar alguém. 

Dois dias depois a bomba. A famosa guitarra do Rambinho sumira. Roubada. Furtada. Notícia de jornal. De rádio. Nas escolas. Nos bares. Indignação geral.

As investigações aceleradas. O Capitão Muniz perguntando daqui. Inquirindo dali. Avançava. Tio Zózimo, demorou pra cair a ficha. Se lembrou do caroneiro misterioso. Seria cúmplice? Estaria com preconceitos? O que fazer? Contava ou não? Era por isso que estava parado em frente à prefeitura e a igreja. Precisava decidir urgente.