“Escolhi ser professora”

Quando iniciei na escola pública, com um tênis Bamba monobloco amarelo, um moletom amarelo, um rabo de cavalo, um jeans surradinho, e um pasta verde embaixo do braço, não acreditava que chegaria aos (quase) 30 anos de sala de aula. Jamais me esquecerei desse dia, até por que o moço bonito e bem sucedido, o grande amor da vida de uma garota sonhadora, passara por mim. E, na mesma hora, senti que ele não se casaria com uma professora. Essas coisas desde menina, sempre senti. Um sexto sentido aguçado que herdei da minha vó. A quem eu sempre desobedecia, por que ela queria muito que eu me arranjasse com um marido, assim todos os meus problemas se resolveriam. Tadinha, mal sabia ela que eu nunca me casaria. 
Como perguntou meu aluno essa semana por que não me casei, quando o interpelei sobre como ele sabia, ele me responde que não havia aliança no meu dedo. Respondi a que seria provavelmente por dois motivos, um por que sou muita chata, e o outro por que sou muito esperta. Ele me tasca, “não prô, você é gente boa pra baralho”. Rimos e seguimos a aula. Mas o mote do texto não é definitivamente o fiasco da minha vida amorosa, até porque no campo do coração sou muito boa com uma sala de 40 lotada.
“Com muito orgulho sou filha de cobrador de ônibus, sou filha de bordadeira e diarista. E eu cheguei aqui porque uma professora com as olimpíadas de matemática de escola pública acreditou que eu também poderia estudar. Porque alguns professores pagaram meu almoço, pagaram as minhas roupas, porque algumas pessoas me disseram que eu poderia fazer faculdade, mesmo que meus pais não tinha terminado o Ensino Médio. E com a ajuda de todas essas pessoas que me ensinaram a sonhar, eu pude chegar em Harvard e estudar Ciências políticas e Astrofísica. E eu chego aqui por que eu pude viver tudo que a educação pode fazer com a gente, todo potencial que ela tem de transformar, mas por que eu também vivi o outro lado da desigualdade, eu perdi meu pai para as drogas, eu perdi amigo, vizinhos para a violência e para o crime. Eu fui feita uma ativista por que eu vi a importância da educação, e via falta que ela faz principalmente nas periferias. A educação não muda se a política e os políticos não mudarem. A educação pública brasileira pode sim ser de muita qualidade para todos. O que realmente não é o que viraliza nas redes, não são os assuntos mais polêmicos, a gente tem que falar de alfabetização ainda, a gente tem que falar de formação, a gente tem falar de formação, de carreira de professores. A gente tem que falar de uma escola, onde os nossos alunos tenham alguma chance no vestibular, no mercado de trabalho, onde eles aprendam a sonhar, e não tenham seus sonhos destruídos.”
A fala da deputada Tabata Amaral de Pontes, cientista política, 25 anos, mostra que ainda há esperança nessas terras tupiniquins, que ainda há voz que represente o menino que chega na escola muitas vezes de barriga vazia, com cheiro de cigarro, ou porque fumou, ou porque os pais fumam e o cheiro impregna na roupa. Ando o tempo todo na sala, uso uma caneta verde por semana pra corrigir exercícios no caderno. Ganho todas. Eles sabem que uso a cor verde, por que ela é esperança, nunca marquei caderno algum com a cor vermelha. E nesses momentos que falo com eles, descubro coisas impressionantes, eles me relatam situações alegres, tragédias. E assim construí minha história na escola pública. Não fui a melhor, não fui perfeita. Falhei, e falhei muito. Principalmente quando leio estupefata que um ex-aluno foi morto brutalmente, e a história se repete. E me sinto tão demasiadamente incapaz de mudar essa realidade, que muitas vezes bate um desânimo, uma tristeza. Trabalho na mesma escola desde a década de 90, e hoje quando vejo um ex-aluno bem sucedido, e há muitos por ai, me bate uma alegria no coração, uma sensação de ter feito a diferença na vida deles.
O discurso da jovem deputada com formação em Harvard mostra de forma visceral a diferença que a educação faz na vida dos meninos e meninas, a importância que tem professor na formação do cidadão. Nem preciso repetir que no Japão as pessoas se curvam para o professor, por que já se tornou piegas essa frase. Mas precisamos urgentemente resgatar o respeito e o valor que um professor tem, precisamos tratar educação como prioridade, precisamos dar aos jovens da periferia uma formação singular para que ele siga o caminho da universidade, para que ele se sinta capaz de mudar as carências que ele traz, para que ele consiga sonhar com uma vida melhor, para que se sinta um ser social, já que a educação liberta sim, por que pra mim Freire sempre será um ícone, por que quem esteve desde menina com um par de tênis amarelo dentro da sala de aula, ela liberta, ela faz crescer, ela é social, ela muda e transforma a vida de muitos.
Penso que temos muito a falar sobre educação, sinto que ser professor me enche o peito de orgulho, me faz lacrimejar de emoção, e me faz principalmente ser humano. Essa semana, li com uma certa dor no peito, meus ex-pupilos que partiram para o Ensino Médio, muitas vezes a palavra saudade nas redes sociais. E não se trata de ser melhor que ninguém, mas de fazer a diferença na vida desses meninos, de conhecer a história que eles trazem, de no dia a dia sofrer e sorrir com eles, de muitas vezes perder a paciência e sair da casinha, e depois de uns dois ou três minutos eles chamarem na carteira pra você tirar a dúvida. E por favor, não me venham dizer o que tenho que fazer numa sala de aula, por que estou nela há quase trinta anos, domino muito bem a arte de ensinar, de cozinhar e de dirigir. Realizo as três funções muito bem, mesmo que eu não tenha me casado, ainda assim, há muito sentimento no coração dessa velha aqui. Obrigada, de nada.