A Venda do Sapatão

A mãe tinha avisado. João Juvêncio, tu só vai ao campinho jogar bola depois que buscar as compras na Venda. O nome oficial era Casa Santo Antônio. No bloco de Notas fiscais. No alto da fachada, escrito em letras garrafais. Mas todos, seguindo a norma popular, a chamavam de Venda do Sapatão.

E entregou-lhe uma lista. Escrita num pedaço de folha de caderno. Arroz, feijão, Rinso, cera Parquetina, sabão em pedra.

Vontade de esmurrar as paredes da casa.  Com a tarefa,   ia perder uma parte do jogo de futebol. Pior, os colegas ririam dele ao vê-lo  carregando as compras. Numa sacola de lona vermelha. Saiu pisando com força a rua. No caminho pensou. E seu eu aumentar em dez centavos o preço de cada item da lista e comprar, secretamente, uma paçoquinha? Uma  tentaçãozinha boa de arrepiar o coração.

Dito e feito. A manobra deu certo várias vezes. Perdia o jogo. Ia à Venda do Sapatão. Comprava uma paçoca. Ilegalmente.  Depois, calado por horas, sentia a faca da culpa cavoucando seu peito.

Mas, o plano era perfeito.   Logo, então,  passou para duas paçocas.   Depois, três. E foi aumentando. A mãe conferia as compras.   Nunca notava o pequeno desvio financeiro.

Chegava na Venda, mirava os preços, escolhia os itens mais baratos de cada produto da lista. Daí dava para comprar mais doces.  A meta era poder um dia comprar um chocolate. No balcão da Venda, sorriam para ele muitos  suspiros cor-de-rosa e amarelos, pirulitos Zorro, Balas Azedinha e Tofe, maria-mole, canudinhos de massa imitando sorvete, pés-de-moleque, drops, Chiclete Ploc.

Por vezes, João Juvêncio até se esquecia do jogo de futebol. Na frente do balcão, viajava nas asas de cada doce. O desfalque no dinheirinho da mãe ia crescendo a cada compra.  Se arrependia, prometia a si mesmo. Nunca mais faço isso. Mas na hora H, na próxima compra, caía novamente em tentação.

Muitas vezes, após efetuar a compra,  ele percebia que o sol estava escaldante  Então  procurava a sombra de uma árvore salvadora, do outro lado da Avenida. De lá ficava olhando o movimento. Naquela época, eram raros os carros que passavam na cidade. Se divertia contando quantos fuscas, corcéis ou gordinis passavam.

De sob sua amiga árvore,  ele podia analisar o desenho  do prédio da  Venda do Sapatão. Ela ficava em frente da Praça da Igreja Bom Pastor. Na Avenida, à direita, indo no sentido a Maringá. Composta de  três portas. As duas da direita eram dedicadas aos cereais e materiais de limpeza. A terceira era o bar. O reino das delícias açucaradas.

De onde ele sentava para descansar e sonhar, se preparando para voltar para casa com as compras pedidas por sua mãe, era possível avistar a Escola Bom Pastor. Da escola  até a Avenida, vinha uma  rua,   uma descida na qual alguns moleques disputavam corridas de carrinhos de rolemã, a aposta era para ver quem cruzava a Avenida sem parar, desafiando os caminhões Mercedes 1313 que passavam rugindo a 40 km por hora.  As mães deles se descabelavam. Vocês vão morrer. O perigo as assustava.  Outros jogavam futebol no asfalto, atrás da casa do padre. Só paravam ao anoitecer.

Vez em quando, dois irmãos, um menino meio ruivo e uma menina desciam até a esquina.  O pai deles possuía um caminhão Dodge Cargo.  De fretes. Atravessavam a Avenida. Tantas vezes, João via os dois, um de cada lado do pai, seguros pelas mãos.  Entravam na Venda do Sapatão. Depois saiam rindo. Com doces e pacotes de biscoitos. E sorrisos.

Em outros dias,  sob os galhos de sua amiga, enquanto tomava fôlego, para a caminhada de volta para casa com o peso da sacola de compras, João Juvêncio podia ver o grande terreno baldio ao lado da Venda. Quantas vezes se perdia olhando as rodas gigantes, chapéus mexicanos, carrosséis dos Parques de Diversões que ali paravam, nas férias escolares?  À noite, podia ouvir de casa, os variados sucessos musicais que o alto-falante do parque tocava sem parar.

Até que não era ruim ir buscar as mercadorias na Venda do Sapatão, ia admitindo com as descobertas que fazia.

E os circos? Sim, sentado no meio-fio da calçada em frente ao Sapatão, João Juvêncio também viu muitos circos. Teve um cujo palhaço ia sempre à Venda. Tomava um vermute. Cara amarrada. Não conversava com ninguém. João até duvidava  que aquele homem  era mesmo capaz de fazer a plateia rir.

A vida de João Juvêncio até que corria tranquila nesta rotina. Mas, um dia as coisas começaram a  se complicar em sua  cabeça. É que a  freira, nas aulas de catequese, ao falar de pecado tocou na alma dele. Desconfiou que aquele desfalque que ele fazia  na despesa da casa,  para comprar paçoquinha, uma vez por mês poderia mandá-lo para o inferno. Foi assim que João passou a se sentir culpado  e, por isso,, quando alguém falava no tal doce ele se encolhia todo.  Por muito tempo, ficou assim.

Independente das culpas do menino,  o tempo voou. A adolescência também. João foi para o exército. Quando retornou, as  saudades da Venda que marcara tanto a sua infância enchiam sua cabeça e se coração. Vontade de visitar a infância. Desejava  visitar a Venda o mais rápido possível.  Queria reviver seu passado.  Ao ouvir músicas antigas renascia o sabor de uma paçoquinha ou de  um suspiro. Até o aroma.

Sua mãe achou prudente avisá-lo. Olha,  o  estabelecimento permanece aberto, no mesmo lugar. Só que Seo Antônio, o Sapatâo, não está mais lá.  Em seu lugar, estão  os novos proprietários. A Familia Rossati.  Ao ouvir o relato de sua mãe, João viu sua infância toda ruir, sumir, desaparecer. Seu mundo foi desabando como se uma bomba explodisse em câmera lente.

Desanimado João protelou, adiou o mais que pode a visita. O medo de se decepcionar era grande. Não queria amarrotar as imagens do seu passado de menino que teve tanta coisa a ver com a famosa venda.

Um dia, que já estava mesmo de azar , ele tomou a decisão. Vou lá, custe o que custar.  Queria ver o que os novos donos tinham aprontado. Ia ser forte. Não queria mais ficar fugindo.

E se deparou com a realidade.

A mãe, em casa, aflita,  ficou aguardando seu retorno. Nem conseguia se concentrar nas receitas de doce da semana. Vai que dá um piripaque nele. Imagina! Foram horas de suspense. Várias vezes foi  ao portão para ver se ele estava retornando.  Já ia pedir ao marido ir atrás dele, quando o avistou virando a esquina.

Com os olhos mareados, foi logo perguntando o que você  tinha achou  da Venda, meu filho, parece abatido.  João sentou-se no sofá de corvin preto.  Abaixou o volume da televisão. E confessou tudo que sentiu.

Os Rossatis foram tão cuidadosos com a história da Venda, mãe,  que até o apelido eles fizeram questão de herdar. De manter.  A Venda do  Sapatão continua  raiz,  com eles. Sendo deles. Sendo de tanta gente. Os  pais ainda param lá,  após o expediente. Crianças continuam a atravessar a Avenida para degustar os doces do balcão. Depois seguem, cheias de sonhos,  para suas casas .

– É incrível, a Venda do Sapatão continua sendo uma terapia como era no passado.  Será que todos já sabiam, menos eu? A mãe ouvia o filho, o bolo crescia no forno. O café cheirava no bule. João olhava, pela porta aberta, um céu azul tão calmo como nunca.

Naquela visita rápida, a primeira depois de tanto tempo,  João   não falou nada para os Rossatis.  As lágrimas não deixaram. Só conseguiu  agradecer  por eles terem mantido a memória daquele lugar que habita a fantasia de tantos meninos e tantas meninas pela vida afora.

Pelos meses afora, retornava  lá muitas vezes.  Até se acostumou a chamar os Rossatis de Sapatão. Em muitas tardes de folga, ficava tentando decifrar os sonhos de cada  criança que entrava na Venda. Em cada uma delas  via a si mesmo diante das fantasias do balcão repleto de doces. João Juvêncio não aposta, mas tem quase certeza de que o encanto da Venda do Sapatão sobrevive continua permanece. Nunca morrerá.