Série sobre apresentador que mandava matar por ibope abala Manaus

Às vésperas de completar 350 anos, Manaus ganhou um brutal retrato de presente. Sem concessões, a série documental “Bandidos na TV”, da Netflix, expõe uma cidade de ruas remendadas, refém do narcotráfico e banhada de sangue.

Disponível desde o final de maio, a produçãão britânica de sete capítulos reconstrói a trajetória de Wallace Souza (1958-2010), apresentador do programa de TV “Canal Livre”.

Carismático, Wallace faz parte da memória coletiva de Manaus. Por anos, liderou a audiência local misturando assistencialismo e uma crua cobertura policial, sem pudor para mostrar corpos chamuscando no horário do almoço.

A imensa popularidade lhe assegurou três mandatos de deputado estadual com votações recordes e uma devoção quase religiosa, mas Wallace caiu em desgraça quando uma investigação policial o acusou de encomendar assassinatos para que sua equipe de TV chegasse antes da concorrência ao local do crime, entre outros delitos, como associação para o tráfico.

O escândalo, que estourou há dez anos e se arrastou por meses, provocou ondas de choque pela cidade. Dividiu opiniões, gerou uma força-tarefa policial, mobilizou a classe política e a imprensa e provocou uma série de assassinatos e prisões.

A série foi um fenômeno instantâneo na cidade. Em geral bairristas (experimente falar mal da Zona Franca), os manauras abraçaram “Bandidos”, transformando o documentário em febre tanto nas redes sociais quanto nas ruas.

Pelo centro, proliferam DVDs piratas com Wallace empunhando um revólver na capa. São poucos os que não assistiram à série e menos ainda os que não gostaram dela.

Em artigo no site Amazônia Real, o colunista Juarez Silva Jr. afirma que o programa caiu no gosto da cidade por mexer com a memória afetiva, por mostrar pessoas conhecidas da população e também pelo forte impacto visual.

“Não sei se o manauara já tinha se enxergado de tal forma, mas, se ainda persistia a velha ilusão de em algum modo ser a cidade uma ‘Liverpool com a cara sardenta e olhos azuis’, ela foi demolida, viram o que o mundo vê ao olhar para cá”, escreveu.

No quesito nostalgia, a cena mais comentada foi uma edição do programa em que o vendedor ambulante Gil da Esfiha, famoso pelo quitute, e o fantoche Galerito, que animava o palco, trocaram socos e chutes no ar enquanto o cantor brega Nunes Filho cantava e ouvia piada homofóbica do apresentador (naquele dia, um substituto de Wallace).

A série também reforçou o medo de morar na 37ª cidade mais violenta do mundo, segundo ranking da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz. Em uma grande coincidência, a série entrou no ar na mesma semana em que 55 presos foram assassinados nos cárceres de Manaus.

“Fico me perguntando como eu ainda estou viva aqui em Manaus”, escreveu, no Twitter, o perfil Vivi, ao comentar a série.

Um dos pontos mais elogiados de “Bandidos” foi equilibrar os depoimentos e as evidências dos que defendem e acusam Wallace, cassado e preso antes de morrer doente em um hospital de São Paulo.

Passados dez anos do escândalo e já sem a influência da cobertura sensacionalista, o julgamento póstumo proporcionado pela série aumentou as dúvidas sobre se Wallace recebeu um tratamento justo da polícia e dos colegas que o cassaram.

“As pessoas demonstram essa dúvida sobre ele ser culpado ou inocente”, diz a produtora local Hélida Tavares, ex-assessora de imprensa da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas.

“No perfil do Facebook da série, a maioria se mostra a favor da teoria que ele era inocente ou nem tão culpado. Outros apontam a culpa apenas para o filho dele.

Na periferia de Manaus, principal reduto de Wallace, a série voltou a acender admiração pelo apresentador de TV. “Votei todas as vezes no Wallace. Se ele ressuscitasse, eu votaria de novo”, diz a aposentada Maria José dos Santos, em conversa em sua casa de tijolos aparentes em Cidade de Deus, bairro violento em um dos extremos de Manaus. Para ela, a série reforçou sua convicção de que ele era inocente.