“Tio Zózimo: A última sessão do cinema”

Foi de arrepiar peruca de careca. Pegou todo mundo de calças curtas. A turma da Rua de Baixo decorava um trator para o desfile de primeiro de maio, quando o Yago, que sabia de tudo, surgiu. Apavorado. Sábado vai ser a última sessão do cinema. Nem conseguia falar direito. Trazia a notícia junto com os gibis que iria trocar na matinê.

Por causa da televisão em preto e branco. Todos foram, pouco a pouco, abandonando o cinema. Sua tela grande. A estrela luminosa no teto. As longas filas de cadeiras numerados. Móveis Cimo. Tudo ia ficando meio cinza nas gavetas gastas da memória.

Tio Zózimo deu um soco na porta da Kombi. Como? Seu olhar percorreu a Avenida. Reviu cenas do passado. Rolo de filme de lembranças. O jipe das Casas Buri anunciando a fita do final de semana.
Jota Gê chegando na sua Lambreta verde e vermelha. Jefferson na direção de um DKW 65. Vinícius, alegre, trazendo o disco do Elvis. Hadija, Sara, Raquel e Izabela de saias plissadas. Azul e branco na calçada. O Gordinho Torino falando das estreias cinematográficas.

Estudantes, sentados, ao lado da bilheteria. Gibis no chão. Permutando. Barganhando. Vendendo. Comprando. Todos atrás da melhor aventura.

Ganhar um sorriso maroto. Uma piscada para a menina que estudava na mesma escola era o maior ato de rebeldia da semana.  Superação. Viagem.

Tio Zózimo relembrando tudo isso. Muito desolado com a notícia. Alguns poucos amigos sabiam. Talvez Jota Gê soubesse. Tio Zózimo nunca tinha entrado no cinema. Jamais assistido um filme. Ficava por ali com a turma antes da sessão. Conversava. Via os carros desfilando. Papos sobre o filme em cartaz. Disfarçava que ia para o fim da longa fila de ingressos.

Sumia, de fininho. Não tinha dinheiro para a entrada? Mas, tinha esperança de que logo, ele também conheceria a maravilhas de um filme. Heróis. Espaçonaves. Grandes romances.

Também ouvia sobre os namoros. Começavam na escola. Na quermesse. Continuavam na praça. Na fila de ingressos. E depois, ao sair do filme, mãozinhos dadas. Casórios, filhos e famílias. O cinema era o grande momento da oficialização do namoro.

Naqueles dias, nos secos e molhados e bazares da cidade, a cada entrega que fazia, a discussão era a mesma. Tá sabendo que o cinema vai fechar?  Talvez, Tio Zózimo fosse um dos únicos a nunca ter assistido a uma matinê, a um bangue-bangue das quintas-feiras, a uma fita de terror, na sexta, a um longa-metragem de aventuras, no sábado. Sem falar do filme de romance, no domingo.

A cada pergunta, ele se contraía. Disfarçava, dedo na sobrancelha, tique de criança. Arrumando os cadarços do sapato marrom.

Instalou-se nele a urgência. A vontade. A decisão. Não perderia a última sessão do cinema, por nada. Economizaria centavo a centavo. Nenhuma despesa. Nem o necessário. Certeza, lá estarei. Foi o lema, durante a semana.

O jipe de alto-falantes. Os cartazes nas vendas. Tudo lembrava. A última sessão do cinema. No sábado. O eco se repetia em sua cabeça. Manhã, tarde e noite.

Manhãzinha do sábado, estava ajudando o povo dar os últimos retoques no trator do desfile. Foi quando pintou o frete que completaria o valor do ingresso. Pra lá do Km 20. No Lombo da Égua. Viu que o céu estava cheio de roxas nuvens. Gigantescas.

Noutras ocasiões, não iria. Desta vez era essencial. Foi. Indispensável enfrentar o perigo. Voltar. Comentou com os amigos. Os perigos da tarefa. Saiu. Seguiu. Partiu. Em busca da grana que lhe daria a última chance de entrar no cinema. Assistir a um filme. Ficar na história.

Afundava o pé no acelerador. Dominava o volante nas curvas. Cantava os pneus nas pedras soltas. A Kombi, um bólido voador. Queria a todo custo retornar a tempo. Sua última chance.

Ânsia de voltar logo. Nem experimentou aquele familiar cafezinho após descarregar. Subiu o carreador do sitio. Aflito. O vento anunciava. As primeiras gotas desenhavam no para-brisa. Ao abrir a porteira, não teve jeito. O dilúvio caiu. De fazer enxurrada. Entortar as árvores. Vacas mugiam ao longe chamando seus bezerros. Trovões, coriscos e ventania.

No painel da Kombi, só lhe restava tamborilar os dedos de desesperança. Com os raios, crescia a certeza. Mesmo parando o temporal, a Kombi não ia conseguir vencer todo o barro que tomou conta da estrada.
Triste, tirou o chapéu da cabeça, se enrolou no paletó e se jogou no banco de trás da Kombi.  O sono veio. Urgente. Apagando da cabeça a desilusão daquele anoitecer de sábado. Dormiu profundamente. De sonhar.
Que o Jota Gê e Sidney rebocavam a Kombi com o trator todo enfeitado para a festa. Sentia até os solavancos na estrada.  Não queriam o acordar para não trazer de volta a decepção.  Nem sentia o frio da tarde. Só o barulho do trator. Nenhuma conversa. Um sonho sem fim.

O sono longo. Quase um pesadelo. Numa freada do trator, acordou. Ouviu vivas e palmas. Onde estou? Esforçou-se para se levantar. Olhou pela janela lateral da Kombi. Estava na frente do cinema. Olhou através do para-brisa. Jota Gê e todos os outros em cima do trator. Festejavam. Comemoravam o resgate.
Traziam até o ingresso para Tio Zózimo. Foi a última fita. O último filme. A última história.