A melhor carne de banha na lata e a tela para colorir de tv preto e branco

Dona Isabelita foi cirúrgica. Ninguém da rua notou. Fingindo conferir os documentos na grande bolsa, disse a João Juvêncio. Estou indo a São Paulo buscar as telas que deixam as tevês coloridas. Se você tomar conta da minha casa, na volta te dou uma de presente.

Caramba! Era o grande sonho de todo mundo. As telas de plástico, com três faixas de cores horizontais, transformavam as tevês preto e branco. Ficavam coloridas, dizia a propaganda.

Todo mundo queria uma. João sonhava assistir Bonanza e Rin-tin-tin em cores.  Arrumando o cabelo na testa, prometeu à Dona Isabelita. Vá em paz. Ninguém bulirá na sua casa.

O coração de Dona Isabelita vinha aflito.  Pipocavam nos jornais e rádios, já há vários dias, todas as horas, que um grande incêndio estava devastando as cidades do Paraná. Se ela fosse pra São Paulo, quem tomaria conta da sua casa? Lotada de produtos interessantes com os quais ela atendia a região.  Por isso recorreu a João.

Ainda mais agora! Ela descobrira uma fórmula para produzir a melhor carne de porco na lata de banha! Não podia perder seu patrimônio.  Tinha preparado duas latas caprichadas. Vinte litros cada.  Já encomendadas, a peso de ouro, por um povo da capital, antigos fazendeiros saudosos da comida do sítio.

Parecia que quanto melhor a carne ia ficando na lata, o incêndio aumentava.

Do outro lado da cidade, um outro drama transcorria. Numa casa de madeira, Sr. Alfredo Correia se debatia. Os incêndios do Paraná. Não queria, não queria se deixar dominar, em outras vezes tinha dado vexames enormes. Mas era quase impossível resistir. Algo dentro dele se agitava, seus braços queriam movimento. A coisa vinha crescendo e de repente se manifestou.

Seo Alfredo novamente perdeu a luta para uma ideia louca. Os incêndios do Paraná são o Fim do Mundo. Sem pensar que seria chamado de maluco, de novo, encharcado por este fogo, saiu às ruas, bares, casas, de forma tão desvairada. Ia convencendo um aqui, outro ali, até que se formou um grupo grande. Que não parou de crescer. Em número e em intolerância.

Dona Isabelita, ainda, com os olhos cheios de dúvidas, recomendou da janelinha do fusca do sr. Valter, o taxista, cuide bem de tudo, mas, cuide melhor das latas de carne de porco na banha. Elas valem ouro. Na volta tenho de entregá-las a compradores especiais.  E partiu.

João pulava, esfregava as mãos, escondido. Se não desse bandeira, ia se dar bem. Não contaria nada a ninguém. Imaginava a cara dos amigos ao se surpreenderem com sua tevê com a tela lindona. Colorida. Mas dentro dele pulsava uma grande preocupação.  Tantas outras vezes, em momentos decisivos como este, tinha afrouxado, o medo fora maior que ele. Estragava tudo.

Antes que o taxi de Dona Isabelita virasse a esquina, ficou aterrorizado. A turma de Alfredo Correia   vinha descendo a rua, visitando, invadindo, casa por casa.  João pôde ver a hora em que atiraram meio tijolo contra a janela da casa da Dona Sueli. Já era uma turma grande e violenta. O povo, por baixo do pano, chamava de os-fim-de-mundistas.

João tremeu.  Vai que eles queiram invadir a casa de Dona Isabelita, roubar a lata de carne na banha. Perco minha tela de plástico de tevê.

Nos dias seguintes, o pânico invadia as casas.    A cada cinco minutos, as rádios anunciavam novas notícias do fogo. Línguas de labaredas. Faíscas quilométricas. Céu de fumaça. Isso dava força ao pessoal fim-de-mundista.

Lá, em São Paulo, como as encomendas, do Brasil todo, das telas coloridas de tevê eram grandes, Dona Isabelita demorava.  Não conseguia retornar no prazo. Assim, a aflição se apossava da mente de João. Queria ganhar a tela. Temia a invasão da casa.  Os homens-do-fim-do-mundo já estavam até usando Dona Izabelita como prova. Ela não voltará mais, não.

Estas conversas eram bombas aos ouvidos de João.  De medo ou esperança, ele não descolava os olhos da rua da Rodoviária. Suspirando que ela descesse de um ônibus a qualquer momento.

Desconfiado, Seo Alfredo enviou um recado certeiro. Se João não passasse a acreditar no final do mundo pelo fogo iria sofrer nas mãos dos findimundos.   Muita gente já acreditava. Alguns até fingiam que acreditavam para não serrem violentados.

O curto-circuito aconteceu quando o denunciaram. Alguém no meio do bando findimundo gritou:  João está de guarda das latas de carne na banha.  As melhores. Da dona Isabelita. O mundo vai se acabar.  Vamos perder esta tantada de carne pro fogo, à toa? É melhor ele entregar logo, gritavam.

Esta ameaça correu como faísca, choque    entre as pessoas fim-de-mundistas. Tanto que secretamente convocaram João. Deram-lhe um ultimato.  Ou ele cedia as latas de carne ou seria o primeiro a ser queimado, diziam.

João, como se diz, ardendo entre a banha e o fogareiro. Não abria mão. Não queria perder para o medo outra vez.  Vinha sonhando com sua tela colorida de tevê. Tendo pesadelos com os terríveis fim-de-mundistas que a qualquer hora poderiam atacar a casa.

Os mais fiéis findimundistas, com olhares raivosos, gritavam que era puro egoísmo perder aquela carne de banha para o fogo. O mundo vai se acabar, mesmo, que que custa entregar a carne?  Vamos deixar para o incêndio comer? Achavam longo demais o prazo de dois dias para João se entregar.

Já na primeira noite do prazo, João ardia em febre, não conseguia dormir pensando nas latas de carne na banha. Ou na sua tela de tevê. Revirava-se na cama. Ouvindo o vento, lá fora. Galo cantando lá para os lados da Caverna do Cambota, perto do campinho torto de futebol. De uma trave não dava para enxergar a outra.

Pulou da cama. Na rapidez da ideia.  Com uma grande carriola buscou duas latas de pura banha que estavam na velha edícula do quintal. E fez a troca. Colocou as latas com carne no carrinho e partiu dentro da escuridão da noite. Escondeu-as para os lados do campinho.

Nem tinha transcorrido o prazo dado, os fim-de-mundo empurraram a porta da casa de dona Isabelita. Derrubaram a cristaleira. Famintos, gulosos. Dona Izla Noveli, a mais exaltada, quebrou a clavícula no batente ao disputar a entrada na dispensa com Etinísio Samped. Carregaram as duas latas de carne, sobre a cabeça, como troféus, até a mesa de madeira. Olhares felinos. Narizes caninos.

Riam. Seo Alfredo   dizia João fugiu de medo. Um mais puxa-saco acrescentou decerto foi pelos fundos, saltando cercas. E pela primeira vez, todos os fim-de-mundos se riam entre si.

O chefe impôs:  eu abro as latas. Era seu desejo contemplar as carnes. Salivar antes de todos.  Nesta hora, ninguém se lembrou de João Juvêncio.  Seo Alfredo mergulhava, ávido, as mãos em concha latam adentro. Banha molhando os punhos da camisa, abotoada até o pescoço. Passou para a segunda lata.  Tornou a enfiar os punhos banha adentro. Torceu a cara. Não encontrou nada além da banha. Cadê as carnes questionava, em silêncio, cada um dos presentes. Davam adeus amargo às carnes da lata de banha.

Miseráveis, uivou Seo Alfredo, comeram toda a carne. Deixaram só as latas para nós.  E emitiu   um berro de findimundis raivoso que balançou a sala toda.  Se arranhava de ódio. Lambuzando a cara com a gordura das latas.  Socou na mesa. Chutou o fogão a lenha. Seus seguidores retiraram balaústres da cerca, molharam na banha e acenderam tochas. Era o grito de guerra final.

Lá de cima do morro, João Juvêncio segurava o riso, amarelava de medo. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Um estrondo.  Estaria descoberto? Nada. Um trovão tinha arrebentado lá para os lados da Vila Vitória. Relâmpagos. Em seguida, de imediato, veio a chuva. Veio a tempestade. Apagando as tochas findimundas.   Molhou a vila, a cidade, o estado todo.  A bonança tão esquecida deu as caras sobre a cidade. No outro dia, os jornais gritavam   o verde das vegetações, amoras, arroz, pastos, café, está de volta. O Paraná se salvava.

Dona Isabelita chegou um dia depois. As chuvas continuaram por semanas. Os findimundistas vendo a vida renascer abandonaram Seo Alfredo.  Na solidão em que se trancou percebeu que a força estranha e maluca novamente o dominava. Precisava atrair pessoas. Aterrorizá-las. Dominá-las.  Uma nova missão formou-lhe no peito: pregar que o mundo ia se acabar por causa de tanta chuva.

Na casa de João, os desenhos animados e os bang-bangs agora não eram mais em preto e branco.