“Tio Zózimo: A descoberta das meninas”

A grande pisada na bola. Existem coisas que doem demais no coração. E que ficam machucando como aquelas canções românticas do rádio.  Como eles conseguiram ser tão insensíveis? O remorso, a culpa. Não colaboraram com as meninas da Rua de Baixo, não as socorreram. Deixaram que se virassem sozinhas. Que fossem denunciadas ao Diretor Bigodudo. Por Licurgo.

Em rodas de conversa, ao pé do muro da escola, no banco da praça, ou na entrada do cinema. Tio Zózimo, J. Gê, Jeffs, Altamiro e Y. Agus não tinham mais paz. E o imperdoável. Perderem o livro que as meninas tinham localizado. Estava nas mãos. A obra mais importante para pesquisarem o passado da cidade. As maravilhas naturais. Por pura falta de empatia. Um minuto de bobeira.  A tortura era grande. Precisavam se redimir. Perante Hadija, Rachel, Julia, Evelyn, Jennyfer e Cris.

E o pior. Elas tinham se arriscado e conseguido copiar e traduzir dez páginas do famoso livro do lendário Johan Flavius. Eles estavam loucos para botar os olhos sobre aquelas traduções. Sofriam imaginando. Descrições de rios. Vozes das cachoeiras. Aves exóticas. Caciques, xamãs e mulheres guerreiras.

Não queriam se rebaixar. Quando Tio Zózimo comentou que era melhor aceitar a derrota e pedir a elas permissão para lerem as cópias, Altamiro se opôs. Elas vão cobrar de nós pelo resto da vida. Jeffs também não gostou. Risco de abrir um precedente e ficarmos escravizados para sempre. Jota Gê, coçando a cabeça, ficou na indecisão, não queria perder os amigos.   Doido para dar uma olhada na descoberta.

Sabedoras da situação, Júlia e Evelyn, o sabor do prato da vingança, na hora do recreio, ou no horário da matinê, no cinema, sempre lançavam umas pistas para provocar mais curiosidades e castigar os rapazes. Vocês não sabem o que descobrimos sobre as cachoeiras do Dourados. Estamos até programando uma expedição para lá.

João-sem-braço, eles faziam ofertas. Ingressos para assistirem ao filme Tubarão não adiantaram. Pares para a festa junina também, não. Y. Agus já estava perdendo a paciência. Foi quando Tio Zózimo teve a ideia. Levavam todas, de jipe, ao show de Jane e Herondy, na praça em Jandaia.

Hadija, sabendo que era hora de dar um passo na negociação, aceitou. Iriam a Jandaia e deixariam que vissem as cópias, com uma condição. Que eles, heróis, recuperassem o livro secreto, o original de Johanes Flavius, requisitado, confiscado pelo Diretor Bigodudo, sob ameaças de destruir, queimar, enterrar. Sem se darem conta do perigo, Tio Zózimo, J. Gê, Jeffs, Cid Ney, Altamiro e Y. Agus nem discutiram.  Aceitaram. O doce sabor da armadilha.

Os rapazes, encantados, devoraram as anotações. Viam com os próprios olhos. A cópia feita pela Hadyja falava sobre os minerais achados às margens do Pirapó.  A página da Jennifer contava sobre as lendas dos povos indígenas do Rio Caitu. Evelyn trouxe a página dela também. Dissertava sobre as culturas agrícolas e caça dos povos do Rio Keller. A cópia da Júlia, depois de traduzida, revelava os casamentos entre os guerreiros e guerreiras das tribos vizinhas entre o Ribeirão Alegre e o Córrego Volga.

Era a pré-história da cidade saltando aos olhos. A natureza, o homem, os animais. As águas.  A curiosidade tomou a cabeça deles. Ainda mais quando a Júlia disse que no livro havia desenhos de cachoeiras e rios, provavelmente o Arassu, o Keller, o Vitória. Trilhas e animais. Caciques e mulheres das tribos.

Endoidecidos, alucinados. Queriam saber tudo.  Queriam mais. Ainda existia uma esperança. Correram para a Biblioteca. Viraram.  Reviraram, mas o livro não estava mais lá. Perderam o elo mais importante da nossa história. Por causa de orgulho bobo. Estava à mão. Agora iam ter de contar com a sorte até alguém conseguir alguma pista do livro. Porque, se fossem perguntar ao Diretor Bigodudo, seriam ameaçados. Expulsão. Reprovação. Orelha de burro.

A situação ficou pior do que no início. Não iam conseguir pagar a promessa. As meninas iam sempre poder cobrar, acusar, ironizar.  Não foram capazes de recuperar o livro.  Jota Gê nem mais saía com sua lambreta, à noite, para dar uma banda na praça. Jeffs nem queria mais discutir o enredo do filme em cartaz no Cine Ipiranga. Tio Zózimo se escondia contando estrelas do céu. Altamiro mergulhado no curso de mecânico de Fusca por correspondência. Ninguém dava um pio.

Mas, na sexta-feira gelada, 5 graus, início de junho, após a festa junina, o Diretor Bigodudo todo satisfeito pelo resultado do evento, precisou pedir socorro… Não conseguia ligar o motor a álcool do seu Corcel 69, verde esmeralda, 4 portas. Se não fossem Altamiro e Tio Zózimo, provavelmente, o diretor só chegaria em casa muito de madrugada, e talvez descobrisse, sem merecer, o gosto das vassouradas de sua adorada esposa.

Altamiro foi dirigindo.  Elogiando o carro. Conversa vai, conversa vem, chegaram ao ponto onde queriam. O livro secreto. Onde estava? O que tinha demais?  Pra que tanta rigidez? O diretor, cheio de si, dava gargalhadas. Estes pirralhos pensam que me enganam. Mandei enterrar o livro no pátio do colégio. Só daqui a 50 anos poderá ser redescoberto. Está na ata. Lavrada. Carimbada. Registrada. Quem viver verá.

Sábado, correrem contar. A descoberta. As meninas vislumbraram uma esperança, só tinham uma dúvida. Será que os rapazes previram o ano de resgate do livro?