Tio Zózimo: A roda gigante da vida

As notícias do Altamiro

O barulho foi grande. Altamiro, o culpado. Chegou espalhando a notícia. Com grandes gestos. Desenhando no ar. Falando alto e com pressa. Uma Roda Gigante chegou na praça. Está sendo montada.

Dito e feito. Lombriga. A molecada ficou com água na boca. Era época do aniversário da cidade. Os tios diziam fábulas. Rememoravam. Barracas de guloseimas na praça. Pipoca-doce colorida. Cheiro de maçã do amor. No ar. Eu não te prometi um mar de rosas, no alto-falante.

Na esquina da Madri Lanches e Banca de Revistas, um caminhão Chevrolet 56, como palco. 5 luzinhas pintadas. Amarela, verde, azul vermelha e roxa. Criavam o cenário e o clima da festa.

Gordinho Torino estava preocupado com outro rolo. Tinham contratado um cantor de fora. Baratinho. Pra cantar em cima do caminhão. Mas o Natã, sanfoneiro dos bailes de terreiro de café, tinha ficado mordido. Ele achava que deveria ser ele a estrela da festa. Ia fazer um abaixo-assinado.

Tudo isso não tirava o foco da molecada. Tio Zózimo só tinha atenção para a tal de Roda Gigante. Nem fazia direito a tarefa da escolinha, imaginando como seria a tal.

Jota Gê achava que ela devia ser maior que o abacateiro da capela. Jeffs ouvira que ela rodava tão rápido que era perigoso atirar uma pessoa quase uma légua de distância. Pra lá da esquina. Yagus botava terror. Se a Roda Gigante emperrar, a pessoa pode ser obrigada até a passar 5 dias lá em cima, até chegar o competente eletricista.

Este converseiro só aumentava a vontade de Tio Zózimo e sua turma. Verem a admirável Roda Gigante ao lado da Fonte Luminosa. Passaporte para a felicidade. Iriam em grupo. Estavam animados. Decididos.

Foi aí.  Receberam um recado da turma do Licurgo. Eles, os 7 queriam refazer a amizade perdida e perguntavam se podiam ir juntos conhecerem a tal da Roda gigante, na praça. É que os 7 Licurgos tinham ficado de mal porque as meninas preferiam conversar com os meninos mais simples.

Corações simples, Tio Zózimo e os amigos, depois de debaterem o assunto, aceitaram reatar a tal da amizade. Melhor ter amigos neste mundão velho de meu Deus.

                                   O retorno do Grunge

Ele demorava para aparecer. Morava na mata do meio da Estrada. Não tinha medo dos ladrões, feras e visagens? Era o Grunge. Paletós de mangas mais longas que os braços. Chapéu furado no coco da cabeça. Calças dobradas nas barras. Cheias de picão. Grudados.

Só assustava os tolos. A turma de Tio Zózimo gostava dele. De ouvir a história que ele sempre contava, recontava e repetia a cada vez que ressurgia, na encruzilhada. Esquina da Capela e da Venda.

Quando ele cruzou este caminho entre a cruz e o copo, a turma abandonou o futebol de bola de meia no pátio da escolinha. Correndo, o cercaram.

Grunge, satisfeito, contou, pela milésima vez, a história. Sempre acrescentando um ponto, uma novidade.

Quem me disse? Quem sabe ouvir a Cachoeira do Arassu que ouça também. Ela diz. Parece um choro de menina, mas é moça cantando. Contando. Guarã, o filho mais novo do Xamã da tribo, alto e forte como o jaguar da noite, pilotava aéreos cipós por sobre as perobas rosas e figueiras brancas. Conhecedor de todas as ervas curandeiras, frutas nutritivas e raízes fortificantes, estava sendo preparado pela tribo para assumir a função do pai.

Com sua velocidade, percorria e fazia amizade em todas as tribos que habitavam das margens do Pirapó às nascentes do Keller. Do Ribeirão Alegre ao Rio Caituzinho Sempre era uma festa quando ele chegava.

Principalmente as cunhãs, as lindas moças indígenas que cuidavam das roças, das festas e das ocas. Exímias nadadoras. Caçadoras de mão cheia.

Grunge ia deixando todos admirados com sua narrativa. Até hoje, ninguém conseguiu superá-lo. Os meninos, de olhos arregalados. Voavam junto com Guarã pelas florestas do Matão.

A cascata sempre repete, contava Grunge. A vida não é só flores. Em cada uma das 7 aldeias surgia um rival de Guarã. Que iam alimentando raiva. Coceira do ódio na pele. Que foram armando planos. Que foram querendo o couro de Guarã.

Vinha chegando a festa da Sétima Lua Cheia. Era a arapuca. Pensavam. Desta vez ia ser na quinta cachoeira do Keller. Domínio da tribo dos Carijós. Cada cacique já tinha enviado flores, frutos e pescados. Os 7 rivais mandaram recado a Guarã. Vamos buscar raízes perto da linda nascente do Ribeirão Vitória. Você, que conhece tudo, vem com a gente?

Guarã gostou do convite. Mandou recado, batendo martelo de madeira na casca da árvore tambor. Que aceitava.  Os 7 rivais ouviram. Vibraram.

Na véspera da Sétima Lua Cheia, Guarã adormeceu em frente à cachoeira que canta, sonhando com as lindas cunhãs que habitavam todas as aldeias. Depois da meia-noite. Teve sonhos. Pesadelos. A cachoeira cantando. Tinha voz e contava histórias de traição. Alianças para vinganças. 7 contra 1.

Guarã, aturdido, acordou com o sonho habitando sua cabeça. Repetia pra si toda hora. Era o dia do encontro com os 7. Ele não sabia dos planos deles. Foi. Eles já estavam na cabeceira do Cambota, conforme combinado através dos tambores das árvores.

Sabiam, Guarã era grande demais para um homem só enfrentar. Pediram pra ele guardar a flecha que trazia à cinta. O arco de Guará era famoso em todo o Arassu. Rápido. Certeiro. Os 7, confome o plano, fizeram filas para marchar. 3 à direita. 4 do outro lado. Guarã no centro.

Subiram em direção à Caverna.  Seria lá. O acerto. A vingança. Guarã não prestava atenção em nada, não conseguia esquecer do sonho em frente à cachoeira. Retinindo na cabeça. Quando a Lua Cheia, prateada, rasgando por sobre as copa da peroba mais alta, clareou o caminho, iluminou-se o sonho na cabeça de Guarã. Intérprete. Foi aí que ele percebeu a trama.

Seu pé voou na cara do primeiro traíra. Seus braços distribuíam murros um a um. Cada rival recebia o seu.  Gritos fugidos na noite. 7 traíras perdidos nas trevas. Guarã retornou banhado pela luz das 7 estrelas, a tempo para a festa da Lua Cheia.

 Tanta foi a emoção da história do Grunge que Sidney e Jeffs, na madeira do banco da venda, ensaiaram um batuque, baixinho, que foi crescendo, tomando a noite. E Jota Gê, inspirado, compôs na hora quatro versos que falavam do herói que pôs pra correr os 7 traíras. Foi a noite toda. O batuque. Na aldeia. E na Venda.

                                                          A festa na cidade

O dia seguinte era o dia. Ver a Roda Gigante. A girar. Jota Gê passou batendo no portão das casas dos seis amigos. Vamos, gente. Que a caminhada é longa. O pai do Yagus ia levá-los de Jipe. Mas decidiram. Leve as meninas que nós vamos a pé, mesmo.

Emyle, Rachel, Hadyja, Sara, Rute, Iza, Laryssa. Na cidade. A festa ia ficar mais bonita. Tio Zózimo pedia. Pressa, moçada. É longe. Depois do Lombo da Égua encontrariam a turma do Licurgo, então, seguiriam juntos. Refariam as amizades. Ruim ficar de mal.  Ódio sempre queima o coração, dizia, Marlene, catequista.

No caminho, em marcha, vez em quando, a lembrança da história do Grunge. Batuque na palma da mão e os quatro versos criados por Jota Gê. Espantando a canseira.

Lá na frente, encontraram a turma dos Licurgos.  Se enturmando. Foram. Pedidos de desculpas. Perdões e não foi nada disso. Palmadinhas nas costas. Ora essa, a vida é assim. Amizade refeita é bom demais, comentou Yagus.

Altamiro não perguntou, mas achou estranho. A turma dos Licurgos, cada um levava um taco de aroeira, um estilingue e pedras nos bolsos. Mas, nem se ligou na questão. Avoado.

Estavam já chegando no Matão. Os Licurgos tomaram posição. 3 de um lado da estrada. 4 no oposto. Pra não dar tempo de reação. Uma surra bem dada. Será que pensavam enquanto acariciavam os bastões? Madeira de dar em doido.

Parece que era na entrada do Matão o momento marcado. Jota Gê sem nada ver, nem perceber, lembrou de cantar os versos da canção dos 7 traíras. Bem alto. Quase gritado. Um pássaro se assustou no alto da figueira. Anu voou. Uma cruz alada nos céus do Alegre. Só aí, Tio Zózimo ligou os pontos. A história do grunge, o plano dos Licurgos. Não ia dar tempo de fazer nada?

Seguiram caminhando em direção à mata, como a um matadouro. Os Licurgos do lado dos barrancos, conforme premeditado plano. Os 7 amigos no meio, vítimas. Lobos e cordeiros.

 Bem na entrada, no desespero, Tio Zózimo repetiu, bem alto, o verso de Jota Gê. As aves se calaram. Os cipós se encolheram. Grunge, parecendo um espantalho, acordado pelo grito, saltou no meio da estrada. Irado, nervoso, pronto pra castigar quem o tinha acordado.

Os Licurgos ao verem a estranha figura dispararam estrada afora. Tropeçando nos calcanhares. Catando cavacos. Segurando as calças. Perdendo, no susto, tacos, pedras e estilingues.

Tio Zózimo e os amigos circularam o Grunge, batucando na palma da mão e cantando os versos do herói. Depois o ergueram nos ombros e percorreram a mata gritando. Grunge é nosso rei. Hey.  Numa algazarra-moleque de acordar bem-te-vis e sabiás-laranjeiras.

A Roda Gigante eles até viram. Mas o bom da festa foi saborear a pipoca-doce, vermelha de groselha, sentados na escadaria da igreja. Os 7 tentando impressionar as 7 meninas com a história dos 7 Licurgos.

*Crônica publicada na 300ª edição do Jornal Agora