“Subestimados em Tempos Inglórios”

Todos os que viviam na localidade de Raposas e Pacífico se deliciavam em todo o grau das águas da Represa do Rio Pacífico. Ela era uma dádiva natural, incrementada ligeiramente por obras de engenhosidade dos homens. Orgulhosamente fora construída a elevação de um dique para aumentar sua capacidade de armazenamento e abastecimento. Fora feita por muitas mãos. E levou décadas para ser terminada. Em outros tempos, não havia interesses sobre aquele lugarejo encravado no interiorzão do país. 
As saídas para solucionar o problema da escassez de água, periódica a cada seis meses, dependiam dos interessados em imediato. Famílias inteiras trabalharam. Jovens despendiam de sua força no ápice da saúde física. Mulheres doavam o tempo extra dos seus afazeres de casa. Eram as que mais trabalhavam. Homens e mulheres em mutirão, por um bem comum. Para si, para os outros e para o futuro.
           Deste açude brotava a vida e a existência da comunidade. Um vale fértil que sempre despertou cobiças de fora. Sentimento elevado pela própria existência da represa d'água.
           Não distante dali existia o Rio das Raposas. Raposas e Pacífico eram rios que corriam paralelos ao norte. A comunidade batizada em homenagem a eles margeava ao Pacífico. O rio das Raposas nunca tivera a mesma sorte de protetores. Estando um pouco mais distante do povo zelador, ele fora assoreado e tinha uma vazão d'água diminuída. Atendia nos últimos anos extensas áreas de cultivo irrigado. Tudo a se exportar. E a demanda era crescente, mas o rio era moribundo.
           Num dia de chuva e de fartura d'água, chegara à comunidade uma equipe forasteira. Marcaram reunião com os moradores. De fora vieram procuradores dos mais diversos interesses. Tinha até parlamentar que nunca tinha ido antes lá. Representações de vários segmentos, principalmente interessados na exportação agropecuária. Afirmaram numa audiência com o povo da necessidade de que uma empresa pudesse assumir o gerenciamento da represa do Pacífico.
Vantagens colocadas, interesses em jogo. Foi incrível, aquela comunidade unida na história pela preservação das águas passou a ficar profundamente dividida após a proposta. Choque de valores. Uns acreditavam que a tal modernidade iria servir a todos. Outros temiam pelo rio ou pela perda de direito a ele. Um impasse pairou. 
Aquela comunidade antes esquecida por todos parecia agora ser o centro de tudo. Raposas e Pacífico nunca viveu algo igual. Pouco tempo depois, amanheceu próximo à represa, um parque de máquinas e de equipamentos. Um imenso cercado pôde ser visto sendo erigido. Já existia um decreto. Até um oficial de justiça se encontrava por ali. A reação popular foi imediata. A parte defensora da represa para a comunidade se colocou no parque de obras. Estava tudo ocupado. 
O principal argumento dos populares resistentes era a situação do rio das Raposas, praticamente morto, e que imaginavam ser o futuro de tudo aquilo ali no Pacífico. A empresa recuou. Mas não por muito tempo, pois dias depois ela voltou. E não voltou só. Para a incredulidade de todos, tinha um número significativo de moradores da comunidade que, de forma combinada, foram defender as obras da empresa. Houve confrontos entre os próprios moradores. Inacreditável. Pais presos, homens feridos. Uma chaga aberta para sempre.
              Raposas e Pacífico hoje convive cordialmente. Não existe mais direito gratuito sobre as águas da represa. Nem mesmo para lazer. O nível das águas baixou bastante também. Há crescente exportação de produtos irrigados de gente de fora e para outras pessoas de mais longe ainda. A vida na comunidade tem piorado muito. A desesperança caminha com o flagelo da insalubridade. 
O povo é infeliz e não sabe que é. Pode parecer uma ironia, mas o lado pacífico de um número incontável de gente dali parece ser só de aparência. Há sentimentos represados e prestes ao transbordamento. Só a história dirá se eles terão tempo de organizar a realidade dramática e canalizar a revolta contra o que de fato os oprime. Ou se esse rompimento se figurará num cenário de tragédia ainda mais profundo.