Na exaltação dos humilhados

Uma certa professora no Reino Unido, pesquisadora antropóloga, teria registrado em um livro, que, certa vez, nos anos da década de 1920, respondera à instigação de um aluno que a abordou sobre um tema. “Qual era o sinal mais antigo da civilização?”. A professora, sentada à cadeira, em profunda reflexão, respondeu que o sinal mais antigo de uma civilização, segundo ela, teria sido a descoberta do fóssil de um fêmur humano cicatrizado. E que pesquisas haviam apontado que teria sido de algum momento próximo à pré-história.

Ela discorreu dizendo que, para aquela época, existir uma cicatrização do maior osso humano que possibilita ou impossibilita um ser a se deslocar para a caça, pesca ou coleta, significa que houve uma comunidade que teria feito isso por ele durante pelo menos seis semanas. E garantido a sua sobrevivência. E essa era a “certidão de nascimento” da primeira civilização. 

No ano de 1994, no mês de agosto, aconteceram, num determinado município do Paraná, jogos internos de um colégio local. Muitos jovens disputavam umas “olimpíadas” com modalidades olímpicas e outras nem tanto. Era, acima de tudo, uma diversão, uma congregação juvenil. Mas, alguns momentos dos jogos chamariam a atenção. 
Tinha um time de uma sala de aula que havia se juntado para jogar futebol de salão, o futsal. No time tinha um atacante (pivô) que jogava de forma razoável. Era um artilheiro. Tinha um grupo de meninos de técnica mediana, uns cinco. E tinha o João Natal, um jovem nascido próximo, ou exatamente, num 25 de dezembro do final da década de 70. O cara adorava esse esporte. Jogava nas alas. Apoiava bem as subidas de ataque, demonstrava firmeza defensiva. Mas tinha lapsos de insegurança. Era algo pessoal. Algum trauma, algum medo. Horas, seguro, horas, não. Os demais do time o reconheciam assim e o aceitavam bem. Ele cumpria uma função fundamental. Marcava poucos gols, mas quase todos os outros de seu time passavam também por seus pés. Porém, na recaída, permitia avanços e ataques de equipes adversárias, ainda que naquele certame não houvesse tido nenhum lance capital por esse limite.

Com tudo isso, esse time surpreendia. Tinha uma média de idades de uns 16 anos. A média da escola era uns 18. Mas, enfim, de “azarão”, e numa disputa em sistema de chaveamento eliminatório entre 12 grêmios, aquele escrete chegou às semifinais como a “sensação” do torneio de futsal dos jogos. Ninguém apostaria de que eles chegariam ali. Mas, lá estavam.

Enfim, a noite do jogo da semifinal. Ia ser numa das duas quadras da escola. Havia aglomeração de gente para assistir nas arquibancadas e nas laterais. O jogão foi frenético e equilibrado. João até ajudou marcando um dos gols no empate heroico em seis tentos. Era apenas o segundo gol dele na competição. O adversário havia sido um pouco desleal. Tinha feito muitas faltas e algumas até não marcadas. Houve até cotoveladas maldosas não vistas pela arbitragem. Tentaram ganhar na intimidação. Eram “mais velhos” e não iam aceitar ser derrotados pelos “moleques azarões”. Mas o fato é que aquele jogo só seria decidido nas disputas por pênaltis. 

Os times não tinham técnicos, a decisão de quem bateria os pênaltis era coletiva entre os atletas. João Natal de cara se prontificou que não queria estar na lista dos três primeiros batedores, de acordo com a regra da modalidade. Acreditava em que tudo se resolveria sem a necessidade direta dele. Os outros três titulares eram quem chutariam. E todos perceberam que João estava inseguro. Se dispuseram. O que ninguém esperava, absolutamente, era de que a série de três pênaltis de cada lado ia mais uma vez terminar empatado em um gol. Vixe. Muito menos João esperava.Mas, naquele instante, estando de recaída ou não, era sobre suas costas que pesava a responsabilidade em dar a sequência à quarta cobrança e primeira alternada, ou seja, se um acerta e o outro erra, acaba-se. O tempo era pouco para se concentrar. O clima de agosto estava bem seco, havia geado forte em junho e julho daquele ano. Respirava fundo, mas, parecia que o ar não vinha. Se lembrou que, há menos de um mês, o Brasil havia ganhado uma copa do mundo daquele jeito. Mas se lembrava do mundo que desabara sobre aquele italiano, o Roberto Baggio, mesmo tendo sido um dos melhores daquele mundial. João ficou mais nervoso. O sangue sumiu da face. Branqueou o sujeito que era de pele cor de canela. O juiz já ia apitar. A torcida, centenas de pessoas, cercava a área dos batedores. Uma muvuca. João lembrou da cotovelada do jogo que tomou de um fulano. Junto disso, olhando para o goleiro adversário, lembrou-se também de que aquele sujeito ficara-lhe devendo um picolé quando João tinha uns 10 anos e os vendia de carrinho nas ruas. Jamais pago. Queria se vingar? Possível que não. Mas, quem sabe, fazer Justiça! Sentiu que os companheiros do próprio time estavam incrédulos. Mas esperançosos. Um do time adversário chegou no seu ouvido e cochichou desferindo uma ameaça de provocação. Outra pessoa da torcida, que até hoje ele não sabe quem é, retrucou involuntariamente no outro ouvido: “Se você marcar, será o herói da noite!”. Aquele equilíbrio de informações o preparou. Autorizado. Corrida. Pé direito. Um foguete no canto.  O goleiro ficou estático. Euforia. Inacreditável. Frenesi coletivo. Do time e da torcida. Mas faltava alguém do outro time chutar. Chutou e o goleiro da equipe de João espalmou. Explosão de alegrias. Estavam na final. Uma noite épica. Cumprimentos vários pela façanha. Até a moça que João achava a mais bonita do colégio e que nunca havia nem chegado perto o veio parabenizar. Enfim, uma noite eterna para quem a viveu ali.

Anos mais tarde, João Natal, profissional das ciências humanas nas quais se graduara, lendo o artigo da professora britânica de antropologia que tratava daquela certidão de nascimento da civilização. Constatou que o que aquela comunidade pré-histórica de humanos fez pela possível recuperação de um fraturado, marca o conceito de sujeitos civilizatórios. E de que essa relação só existe através da Fraternidade, da Compaixão e da Empatia entre estes comuns. Sobretudo praticada para aqueles que conformam o “elo mais frágil da corrente”. Lembrou-se, com isso, de seus colegas de colégio. Daqueles que compuseram aquele time inesquecível da juventude. Alguns que há muito não os via. O quanto ele era grato pela confiança e apoio depositados nele nas circunstâncias daqueles episódios desportivos, mesmo nas fases agudas de suas debilidades emocionais. E que a confiança nele depositada pôde retornar de forma crucial, decisiva e significativa naquela ocasião. Mas, para ele, o mais importante, é que de uma forma ou outra, serviram-lhe como lição para ajudar e ser ajudado em outras tantas ocasiões vida à fora. 

*João Flávio Borba. Natural de Mandaguari, atua com pequenos agricultores familiares e assentados de reforma agrária em regiões paranaenses.