“Tio Zózimo: O quintal da Vovó Linha Dura”
É de deixar o cabelo em pé. Num galope. A fotografia da Rua de Baixo se modificou. Instantâneo. As casas de madeira. Substituídas. Sumidas. Lares com outras caras. Cimento e vidro nas faixadas. Cinza sobre cinza. Ao longo. Acima. Abaixo. Pouca gente se deu conta.
No meio. Intacta. Impávida. Só. Resistindo à mudança galopante. A casa da Vovó Linha Dura. Madeira de lei. Pintura a óleo. Balaústras coloridas.
Bem que os homens famintos das construtoras tentaram. Mas ela nunca aceitava. Nem sequer discutia.
Tio Zózimo, de Kombi, pelas ruas, via as calçadas, mas já não conseguia ver os fundos dos quintais. Frutas, balanços nos galhos. Garagem com bicicleta, peneiras, bolas de futebol remendadas.
Não havia mais fretas para estas visões. Paredes de concretos contra os corações. Só quando passava na frente da casa da Vovó. Pelo portão, podia assistir à natureza brincando no pé de figo. O sabiá merendando no caquizal. As abelhas brincando de roda nos galhos das mangas Bourbon.
Pelo retrovisor da Kombi enquanto aguardava o sinaleiro abrir, por um instante, viajou. Quintal da sua infância. Jabuticabas, tangerinas. Um mundo de brincadeiras. A rede entre as laranjeiras. O desenho do jogo da amarelinha. As traves nas goiabeiras. Vozes da turma. Cada dia num quintal. Cada mãe fiscalizava. Missão diária de vigiar e ensinar.
Acelerou a Kombi, o retrovisor embaçado. Alguma lágrima escondida na mancha do espelho. Ao chegar ao outro farol. Sinal vermelho. Quando foi que todos da turma se esqueceram dos velhos amigos quintais? A troca da limonada pelo Ki-suco de saquinho? Espaço da infância. Mundo antigo. Atrasado. Caipira. Ninguém da turma queria mais. Nem falar.
Só o mundo atual. Velocidades. Motos. Astros da TV. Algumas palavras em inglês. Gíria importada da cidade grande.
Susto. O automóvel de trás buzinou irritado. Nem percebi a mudança. Engatou. Seguiu. No quebra-molas, surgiu a ideia. Visitar o quintal da Vovó Linha Dura. Ela, rígida, não aceita. Desde que as garras das imobiliárias tentaram fisgar sua data. Sua história. Sua vida.
Distraído, quase atropelou um bicicleteiro. Traçava um plano. Visitar o tal quintal. Nem percebeu o perigo. Entrega de chocolate na padaria. A escola do outro lado. Um estalo. Uma ideia. Na Páscoa, a Vovó Linha Dura costumava viajar.
Seria a hora? Foi. Ficou de butuca. Na sexta-feira santa. Estrategicamente escondido. Até que ela saiu com sua Variant. Relíquia cheia de malas e pacotes de ovos. E caiu no mundo. Zarpou. Deitou o cabelo. Em busca da parentalha. Coração acelerado.
Era tarde. Tartarugas do asfalto tinindo ao sol. Cada um fechado na sua internet. Tio Zózimo pulou o muro. Esgueirou-se. Sombras do corredor. Estalos das madeiras ao carinho do sol. A ponta do medo espetando o peito.
O velho poço d`água. O sarilho. As cordas. O balde. Não resistiu. Uma caneca. Um gole. Bom renascer. Na beirada do muro, os canteiros, fora de ordem. Tijolinhos. Plantas medicinais dando as mãos a flores. Onze horas, cidreira, margaridas e beldroegas.
Olho na fresta da garagem. Antigos trabalhos escolares faziam a decoração. Mapas. Cartolinas. Uma pilha de livros.
A pressa. Tinha ainda o fundo. As árvores. Abacateiro, acerola. O chão gostoso. A terra. O contato. Nem percebi quando dormi. Sonhei sob a goiabeira? A mãe colhendo cidreira. A vizinha, por cima do muro, oferecendo uma flor. A troca de limão rosa por uma espiga de milho verde. O barulho do balde cantacantando em busca de água fresca. Quanto tempo durou?
Na segunda-feira, a Vovó descobriu marcas da passagem. Passos. Folhas colhidas. O balde fora do lugar. Nem se preocupava mais. Todo ano, algum antigo menino da rua vinha matar as saudades. Renascer na Páscoa.