Além da nostalgia: como a realidade tornou o retorno de Matrix uma boa ideia

Mais do que uma aposta em lucro certo, Matrix Resurrections chega em um momento oportuno

Com informações do Jovem Nerd

O anúncio de que Matrix ganharia um quarto filme foi recebido com um misto de alegria e descrença pelo público. Isso porque a indústria cultural vive um momento de retorno a franquias já estabelecidas para lucrar em nome da nostalgia. Essa estratégia não é segredo — e certamente tem certa influência na volta de Neo e companhia –, mas Matrix Resurrections é um caso raro em que isso pode ser, de fato, uma boa ideia.

Essa resistência com um novo Matrix não é coisa de “fã chato”, já que as próprias irmãs Wachowski, diretoras e roteiristas dos originais, passaram anos negando propostas para fazer o quarto filme. Lilly chegou a criticar como estúdios aprovam reboots e continuações pensando apenas em lucro, e disse que a ideia de voltar à Matrix era “particularmente repulsiva”.

Com o passar do tempo, a possibilidade pareceu mais atraente até que Lana aceitou retornar para a sequência com a bênção de Lilly, que não participa de Matrix Resurrections, mas diz ter esperanças de que o filme seja ainda melhor que o primeiro. Considerando que dinheiro nunca foi um problema, o que teria motivado as criadoras a mudar de ideia? Um forte indício está no fato de que a realidade também mudou, e criou o ambiente perfeito para que Matrix se faça relevante novamente.

Em primeiro lugar, nosso relacionamento com a tecnologia mudou. O Matrix de 1999 utilizava televisões de tubo e a novidade dos telefones celulares para tecer comentários sobre controle e ilusão. Mais de 20 anos depois, temos smartphones com possibilidades infinitas não apenas de comunicação, mas também de entretenimento, negócios e muito mais.

Além de trazer novas possibilidades narrativas, o avanço tecnológico também traz consigo os debates a respeito dos efeitos que os dispositivos podem causar nas pessoas. Temas como vício em tecnologia ou até o efeito de redes sociais na saúde mental dos usuários podem ser facilmente conectados em uma história em que a humanidade é controlada por máquinas.

O momento atual da tecnologia no mundo real também pode ser relacionado a outro tema forte em Matrix: a realidade. Em um dos diálogos mais icônicos da franquia, Neo pergunta a Morpheus se onde se encontram “é real”. Cheia de significados simbólicos para a trama em 1999, essa pergunta poderia facilmente ser recontextualizada para uma era, onde a verdade se tornou quase um detalhe.

Nos últimos anos, vimos a materialização da pós-verdade, conceito que segundo o dicionário da Universidade de Oxford é uma “situação em que as pessoas estão mais propensas a aceitar um argumento baseado nas próprias emoções e crenças do que em fatos”. Isso só foi possível graças à proliferação de fake news e algoritmos que lucram com desinformação ao ponto de pouco fazer para combatê-las.

Esse tópico, inclusive, chegou até Matrix na vida real. Recentemente, a extrema-direita tentou cooptar a pílula vermelha como símbolo para “despertar para a verdade” como forma de propagar negacionismo disfarçando como uma “verdade dura”. Personalidades como o bilionário Elon Musk, Ivanka Trump, filha de Donald, e até o ex-Ministro da Educação do Brasil, Abraham Weintraub chegaram a fazer referência a isso. Nas três oportunidades, Lilly Wachowski — que descreveu a trilogia original como metáfora para pessoas trans — fez questão de responder: “vai se f@$*&”.

Sendo o conceito de realidade e verdade temas muito importantes para a franquia, seria quase lógico se eventos como esse servissem de inspiração para o novo filme. Em uma das mais icônicas cenas do filme original, Morpheus explica a Neo como o sistema da Matrix faz de tudo para se proteger, inclusive seduzir os próprios humanos para protegê-la. Isso tudo décadas antes de redes sociais e algoritmos chegarem ao ponto de interferir em tantos aspectos das nossas vidas e até nas eleições.

O lado bom da tecnologia

Por outro lado, a evolução tecnológica pode ter trazido inspirações mais positivas para o novo Matrix. A computação gráfica também avançou de forma impressionante desde que a trilogia original chegou ao fim, o que por si só traz novas possibilidades que sequer existiam há duas décadas atrás.

Não que os primeiros filmes tenham um visual datado. Mesmo com o envelhecimento dos efeitos visuais da época, ainda é bastante impressionante assistir a cenas como a que Neo desvia de balas ou luta contra dezenas de Agentes Smith. Isso porque já na década de 1990, a produção soube equilibrar coreografias de luta, efeitos práticos e computação gráfica de primeira para a época.

Imagine então o que pode sair de um novo Matrix com recursos de uma época em que Hollywood gasta milhões de dólares em efeitos visuais por saber que o público é atraído por esse fator. Tenha em mente que Matrix Revolutions (2003) é anterior a filmes como Avatar (2009), a nova trilogia de Planeta dos Macacos, franquias bilionárias como o Universo Cinematográfico da Marvel e também os novos episódios de Star Wars, que foram aclamados por trazer avanços na criação de seus universos fantásticos.

O fator humano

Por fim, há também uma boa razão para Matrix voltar sem relação com tecnologia: o retorno triunfal dos filmes de ação. Não que o gênero tenha caído na obscuridade, ele sempre esteve por aqui, rendendo bilheterias astronômicas e fazendo o nome de astros como Dwayne Johnson, Vin Diesel, Jason Statham e muitos, muitos outros.

Porém, é inegável que o gênero ganhou um novo fôlego recentemente com a chegada de dublês na cadeira de direção. Em filmes como Atômica (2017), Deadpool (2016), Resgate (2020) e tantos outros, Hollywood voltou a trabalhar porradaria com mais cuidado e carinho. Aos poucos os embates cheios de cortes gravados com câmeras trêmulas deu lugar a uma limpeza que priorizava um melhor aproveitamento das coreografias de ação.

E é claro que o grande precursor desse tipo de filme é a franquia John Wick, que não apenas trouxe os holofotes de volta para Keanu Reeves, como também influenciou toda a forma de se pensar e filmar ação. O fato de que o primeiro filme foi co-dirigido por dois ex-dublês de Matrix reforça não apenas o quanto a franquia fez bonito nos anos 1990, como também cria grandes expectativas para que o novo filme eleve ainda mais o patamar do gênero.

Desde sua concepção, Matrix soube transformar zeitgeist, o “espírito de sua época”, em arte. É até curioso como conseguiram encapsular em duas horas esperanças, temores e gostos que permeavam a cultura ocidental na virada do milênio. Considerando a forma como a tecnologia se tornou ainda mais presente — e cada vez mais intrometida –, parece uma boa hora para Neo despertar novamente.