“Tio Zózimo – Fragmentos irrecuperáveis”

É de colocar a barba de molho. A Kombi do Tio Zózimo respirou fundo na freada. Um trololó de pessoas subia da Rua de Baixo. Firmou os olhos. Meu Deus, que será isso? Rapazes e meninas, gente boa. Corriam atrás do Gordinho Torino. Perseguição. Chinelos cantavam no ar. Gritos voavam. Torino, como uma bala, batia o recorde de velocidade. Um Pega-não-pega. Despertando postes. Assustando taxis. Amedrontando gatos e pardais.
A Kombi tomou a decisão. Cortou o caminho dos perseguidores. Protegeu o fujão. Tio Zózimo, mesmo sem querer, teve que protagonizar. O que está acontecendo, gente?
Arrumando a bandana de caveirinhas, Sidney mostrou autoridade. É que a surpresa foi grande. Um soco na boca do estômago. Sem mais nem menos. O Gordinho Torino veio com a notícia. Na hora ninguém acreditou, ué.
Nem quer acreditar. Era o Jota Gê. Inflamado. Ele vai ter de provar que é verdade. Tio Zózimo não decifrava nada do que estava acontecendo. Tudo gente boa, agora, brigando deste jeito. Não pode ser verdade.
Vermelho, Jefferson também tentou desmanchar o nó. Explicar. Foram anos de boas influências. Novos temas regando bate papos depois das aulas. Comportamentos inéditos.
Tio Zózimo cada vez mais perdido que caroço de milho em angu de quaresma. Façam o favor, contem logo ou parem com esta ziquizira. Um chinelo voou por cima da Kombi. Raspou Torino, agachado atrás da árvore da calçada.
Antes que o segundo chinelo decolasse da mão da Sara, Yago tentou impor a diplomacia. É que agora, na metade de abril, quando o assunto devia ser a chegada do homem à Lua ou a convocação do Pelé para tentar o Tri, vem o Torino, logo ele, trazer a notícia que perturbou todo mundo. Ninguém resistiu.
Tio Zózimo nem teve tempo de segurar uma nova arremetida de chinelos. Um pé direito explodiu, chocou-se contra a janela da Kombi. E a história também quase o destruiu. Só não desmoronou, por causa do perigo dos chinelos voadores.
Repetia como um autômato. Assustado. Surpreso. O fim dos Beatles? Sim, a voz da multidão encheu de tristeza a rua. Os quatro rapazes de Liverpool se desentenderam, gritou Rachel. E por que vocês estão querendo linchar o Torino? Ele só quis contar o revestrés, de tristeza, gente. Por acaso foi ele quem provocou a briga entre Paul e John?
Hadija, sob a árvore imóvel, serena como as asas de um teco-teco, resumiu a situação. Como se dá uma notícia desta assim? Sem anestesia ou preliminares?  Ele sabia que todos nós adoramos a banda.
Tio Zózimo percorreu os olhos da turma. Adivinhava o que todos estavam sentindo. Ele também estava. A dor espalhou-se pelo futuro afora. A certeza de nunca mais ter um disco novo da banda. A doce espera das novas canções. Ouvir os discos na varanda. Imitar os quatro Beatles nas gincanas do Ginásio. Um jamais como este marca demais cada cabeça jovem.
Na boa intenção de aliviar o clima, Yago intercedeu. Aposto que tem o dedo da Yoko nesta separação. Foi um gol contra. Em vez de acalmar, entonou o caldo. As meninas atacaram Paul. Os cabeludos do grupo defenderam Ringo. Mateus e Suely bem que tentaram. Mas eram só os dois para elogiar o George Harrisson.
E neste chove-não-molha, nasciam argumentos de lado a lado. Felipe chegou com uma vitrola portátil embaixo do braço. Ia tocar o último disco da banda, ao contrário, de traz pra frente, anti-horário, para descobrir mensagens subliminares da cruel separação.
Jota Gê trouxe a capa do disco anterior. Via nas fotografias pistas que confirmavam os boatos. Uns acreditavam. Outras debochavam. A maioria, emocionada, com a força de cada argumento, mudava de opinião a toda hora. Muitos torciam para aquela disputa emocional não terminar nunca.
Torino precisava ir pra casa. Cada vez que se levantava um chinelo era disparado. Em sua direção. Talvez aí tenha nascido sua vocação de soldado antiaéreo.
A empolgação fervia. Incomodava. Um grito de mãe interveio.  Cortou a rua. Todos viraram bons mocinhos na hora. Até os mais valentões. Outras mães apareceram às janelas. Uma mãe sozinha não faz o regime da rua. É preciso que outras mães lancem outros gritos de mães.
A paz retornou. Ordens maternas não se discutem. Torino, impetuoso, passou pela turma. A rua queria dormir. Chaminés consultavam os relógios. Muitos ainda teriam de puxa água do poço. Rachar lenha. Banho quente no chuveiro de balde e cordinha.
Tio Zózimo apostava. A Lua, no céu, atrás das nuvens, está assoviando Let it be. Só no outro dia iam tirar a notícia a limpo. A noite caiu. Um mármore. Um golpe.  Estranho gosto derretendo nos lábios. Torino sabia, não queria ter magoado ninguém. Nem disse a frase mais amarga. O sonho acabou.