“As coisas pertencem a quem cuida delas”

Numa certa época, um inquilino de uma casa do meio urbano de uma pequena cidade quis plantar uma pequena muda de uma árvore que, quando adulta, é muito alta e linda: uma Peroba Rosa. As sementes que fizeram brotar foram pegas numa praça central de Paraíso do Norte, noroeste do Paraná, pois em meio à mata fica difícil encontrá-las, mas se o bosque é numa praça, tais sementes ficam visíveis no calçamento, geralmente nos meses de agosto e setembro. Enfim, com a ajuda de um amigo viveirista, fez várias mudas e, no tempo certo, o inquilino plantou uma delas aos fundos do quintal da casa alugada em que vivia. A fez em homenagem à uma filha recém nascida. “A cada humano que nascesse ao menos uma árvore a mais no planeta”, assim pensava.

Pois bem, cultivou a pequena árvore, aguava seu entorno inclusive nas estações mais secas. Com menos de dois anos a planta já ultrapassava um metro de altura. Levaria anos, mas sua expectativa era a de que se tornasse uma árvore frondosa. Neste mesmo período, no entanto, o inquilino e sua família tiveram que se mudar desta casa, inclusive de município. E tudo que um dia planejou com aquele espaço ficaria submetido a outros que ali passariam a viver. Os muros altos do quintal e sem visão ao fundo, onde fora plantada a pequena peroba, seriam os fatores que guardariam o mistério pelos anos que viriam a seguir. Novos moradores daquele lugar seriam guardiões daquela arvorezinha que fora plantada com tudo o que povoava a subjetividade do inquilino? Ali havia sido depositado amor, esperança, expectativas e, simbolicamente, fé no futuro da humanidade.

Esse pequeno conto do inquilino e da muda da peroba-rosa nos remete à um momento chave contido num livro da literatura universal, muito conhecido: “O Pequeno Príncipe” do autor Antoine de Saint-Exupéry. Nesta obra, numa passagem, o personagem principal deixa seu planeta, que é muito pequeno, e que continha a sua “Rosa Única no Universo”. Nesse mesmo planeta ele também tinha um carneiro. O Principezinho, angustiado em meio a um diálogo com o aviador, se indaga: “Teria a sua rosa sobrevivido à fome do carneiro?” Um momento da literatura amplamente estudado por diversos ramos das ciências humanas.

Ambas histórias, por sua vez, nos implicam sob a dimensão do cuidado real, concreto com aquilo que devemos valorizar e nos importar. Mais até do que isso, que são essenciais à nossa existência humana. Na fase atual da história, nossa casa comum está à beira do colapso. Adotamos “modelos de desenvolvimento” que estão colocando sob risco a viabilidade da vida no planeta. Para exemplificarmos, o modelo de agricultura adotado e que se denomina nas últimas três décadas de agronegócio está impactando e destruindo os ecossistemas naturais. Milhões e milhões de insetos benéficos aos ciclos de perpetuação das espécies vegetais estão sendo mortos pelo envenenamento excessivo e indiscriminado dos ambientes. Se estes polinizadores se extinguirem, nós vamos nos extinguir junto com eles.  São esses insetos que polinizam as flores de quase todos os alimentos vegetais que consumimos. Sem abelhas, não tem milho, soja, feijão, trigo, aveia, frutas e etc. Outros igualmente importantes como marimbondos, vespas, mamangavas, cigarrinhas, besouros, joaninhas e pulgões são impactados. E a sua ampla maioria nem são pragas de lavoura alguma, mas morrem e nos deixam “órfãos de sua polinização”. E tudo isso em nome de um ilusório “equilíbrio do PIB” mas que na verdade é o enriquecimento de poucos, muito poucos. 

Há saídas. Mais povo no campo é mais gente produzindo comida, cuidando da casa comum, gerando e distribuindo riqueza. Sistemas agroecológicos que podem conter o risco de extinção das espécies só podem acontecer mediante a presença de homens e mulheres que cuidam disso. A casa comum, nosso planeta, pertencerá a quem cuidar dela. É um princípio que, cedo ou tarde, estará na agenda principal de todos que a habitam.

O causo do “Inquilino e sua pequena Peroba Rosa” assim como a passagem do “Pequeno Príncipe e sua Rosa Única no Universo” são provas de que a “dúvida” advinda do mistério é algo que povoa os sentimentos e isso é muito bom. Motiva-nos a ideia de como podíamos ter cuidado melhor das coisas para assegurarmos sua existência. Diversas circunstâncias, talvez, impedem de se fazer isso. É, no entanto, nosso exercício frente às coisas cotidianas, aparentemente “únicas e pequenas”, que nos condiciona ao cuidado com o todo mais “complexo e grande”. A quem compete perpetuar a Casa Comum? Sob qualquer dimensão, as coisas pertencem a quem cuida delas.
 

* José Flávio Borba é nascido em Mandaguari. Graduado em Agronomia pela Universidade Estadual de Maringá. Assessorou o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Mandaguari e região entre os anos de 2004 e 2013.