A desmitificação do passado na internet

Entre tantos que escreveram sobre a memória, cito um trecho de Santo Agostinho, no livro Confissões, pela beleza metafórica de sua linguagem: “Chegarei assim ao campo e aos vastos palácios da memória, onde se encontram os inúmeros tesouros de imagens de todos os gêneros, trazidas pela percepção.” (AGOSTINHO, 1984, p. 257).
Um dos elementos componentes da elaboração da epopeia clássica é a concepção mítica do passado. Há um fato histórico importante e com o passar do tempo a esse fato são adicionados elementos míticos.
Tome-se como exemplo “Os lusíadas”, do poeta Luís Vaz de Camões. O texto foi publicado em 1572, narra as conquistas gloriosas do povo português, tendo como referência a descoberta do caminho marítimo à Índia, por Vasco da Gama, entre os anos 1497 e 1499.
Entre o fato histórico, viagem de Vasco da Gama, e a elaboração do texto literário, “Os lusíadas”, há um período de tempo suficiente para serem criados mitos populares coletivos em torno do fato. 
Outro exemplo mais simples e mais próximo: a história do cangaceiro Lampião. Com o passar do tempo, a vida do cangaceiro toma dimensões míticas narradas na literatura de cordel, a chegada de Lampião no inferno, no paraíso, seu encontro com o padre Cícero céu, entre outros. 
O poema épico é a materialização do passado coletivo. O poeta busca nos vastos palácios da sua memória individual aquilo que a coletividade elaborou sobre o fato ocorrido.
Mas há uma epopeia individual, que cada pessoa traz em sua existência, o que foi elaborado artisticamente pelo escritor irlandês James Joyce, ao escrever “Ulisses”, em 1922, no qual é narrada a trajetória do personagem Leopold Bloom, em mais de seiscentas páginas, em apenas um dia de sua vida. Evidentemente que aqui o recurso da memória é amplamente utilizado.
Na existência individual do ser humano, o passado também adquire contornos míticos, pois entre o tempo presente e o passado distante criam-se pequenos mitos, nos quais realidades são misturadas a devaneios, sonhos, desejos realizados e frustrados e outros. 
Tudo porque os fatos passados residem nos “vastos palácios da memória”, numa confusão de sentimentos. Ou melhor, residiam.
Com o advento da internet e a democratização de seu uso, o passado já não é tão inacessível. É possível ouvir músicas antigas, à exaustão; ter acesso a várias fotos e filmes pessoais antigos com a maior facilidade.
Assim, aos poucos, o passado vai perdendo sua condição mítica, pode-se acessá-lo a qualquer instante, ouvir músicas que marcaram época, ver imagens gravadas apenas na memória.
Aquilo que vivia numa esfumaçada região da memória, com um simples toque nos “youtubes” e “facebooks” da vida, torna-se presente. Apagam-se as fantasias criadas pela mente entre os fatos passados e o momento presente da atualização pela memória. 
Aos poucos a internet contribui para o processo de desmitificação do passado individual. Não sei se isso é bom ou ruim. É um fato.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984. p. 274.