Era aniversário da cidade

Por que Bandaide se negou a pintar o portão da terceira janela? O pessoal da rua, o sol, os automóveis tudo parou para ver a cara de desconsolo de Salvador.
Até agora pouco estava tudo bem, comentou Quintino, da porta de sua barbearia.
Tinha visto Salvador rindo muito. É que Bandaide tinha virado “meme” da galera da rua. Os moleques tinham filmado ele caindo com a lata de tinta, na calçada, em frente à Farmácia do Seo Luiz. Crueldade correndo de celular em celular.
Pudera, todo ano, as famílias queriam pintar o portão de novo. Deixar a frente da casa ornando. Para o desfile das escolas. E das autoridades. Era tempo de ganhar um dinheirinho extra. Corriam os dois. Salvador e Bandeide. Para lá. Para cá.
Procurando encomendas de pintura. Executando a tarefa. Buscando tinta. A Vila ficava mais bonita, diziam. Daí que quando foram pintar o portão da casa do Seo Luiz Farmacêutico, gente boa toda vida. Levaram o susto. Seo Luiz estava gritando horrorosamente com a esposa.
O suto ou a decepção foi a verdadeira causa da queda de Bandaide. Aquele homem tão bom no balcão da Farmácia em casa se transformava numa fera. Tá lembrado do Hulk? Ou do médico e o monstro? Foi assim que Salvador tentou explicar para o parceiro.
Mas, os dois ficaram de bico fechado. Não contaram para seo ninguém o que haviam descoberto. Coitada da Dona Tereza, aguentar aquele monstro e, pior, se contasse ninguém acreditaria. Era capaz de se revoltarem contra ela.
Para evitarem encrenca e ganhar tempo, foram pintar a casa vizinha. Do filho do farmacêutico. Ciro. Recém-casado. Jogador de futebol. Esplêndido. Tinha troféu dos campeonatos dos três últimos anos. Campeão. Revelação. Artilheiro. Praticamente um Cristiano Messi da Vila.
Estavam misturando, combinando as tintas. Vermelho e verde para dar um tom marrom puxado para ocre. Quando ouviram. Ela. A esposa reclamando. Não de forma dura. Mas, com jeito. Carinhosa. Indicando uns remédios para ele. Não conseguiam ver o rosto de Ciro. Se chorava. Ou se murmurava.
Bandaide, com as mãos, tapou os ouvidos. Não queria ouvir mais nada naquela tarde. Logo, o Ciro, ter esta fraqueza. Salvador se lembrou dos Almanaques antigos que a farmácia distribuía. Procurando alguma teoria nas velhas lembranças.
Chamou o amigo. Sentaram no meio-fio, em frente à Padaria. Com uma latinha de Lokal na mão. Ele disse. Dizem que alguns homens não têm escolha. Ser ótimo em uma atividade e não ter aptidão em outra. É como uma marca do destino.
_ E se o sujeito consegue reverter o prato da balança? Perguntou Bandaide pensando nas belas jogadas que Ciro fazia. Em qualquer campo. Salvador jogando a latinha longe murmurou esquece. Jogador tipo igual o Ciro joga bem durante muitos anos. Quando a cidade completar o centenário estará lá ele, campeoníssimo, ainda.
No dia do aniversário, Salvador e Bandaide, da esquina da praça, olhavam o palanque das autoridades. Lá estavam, também, Seo Luiz farmacêutico e a esposa. Ele muito cavalheiro com ela. Até abanava o leque. Representavam um deputado estadual que não pôde comparecer ao evento. Prestavam um favor.

Donizeti Donha
professor da Rede Estadual de Ensino