Após 70 anos, narrativa mais difundida do Maracanazo mostra o “perigo de uma única história”

A obsessão pelo sucesso parece mais natural que a pelo fracasso. No entanto, 70 anos após um dos maiores traumas futebolísticos do Brasil, a derrota para o Uruguai por 2 a 1, no jogo decisivo da Copa de 1950, ainda paira como uma neblina estremecedora no imaginário brasileiro. O clima de otimismo, a decepção com aura de tragédia grega e as narrativas imprecisas, mas que criaram uma “única história” no senso comum, tornam ainda presente o “silêncio ensurdecedor” no então maior do mundo, sete décadas depois.

A expectativa

Em 1938, a seleção brasileira conquistou o terceiro lugar na Copa do Mundo, na França. Após 12 anos de espera – a paralisação ocorreu por conta da Segunda Guerra -, o torcedor brasileiro reencontrou o Mundial da maneira mais especial possível: o país sediou a disputa. Para a ocasião, foi construído o então maior estádio do mundo, o Maracanã.

As expectativas eram altas por conta do contexto que envolvia o torneio. Doutora em literatura comparada e membro do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte da Uerj (Leme), Leda Costa explica que o sucesso da Seleção estava associado ao triunfo do Brasil como nação.

– Em campo, tínhamos uma Seleção tomada como sinônimo de nação brasileira. Hoje em dia não temos mais isso. Estava em campo um projeto de nação pela Seleção e pelo Maracanã, estádio construído e erguido em menos de dois anos para a Copa do Mundo. No dia 16 de julho, recebeu o equivalente a 10% da população carioca na época. Era mais que um jogo – explicou a autora de “Os vilões do futebol: jornalismo esportivo e imaginação melodramática”, obra que será lançada neste ano.

Os resultados dentro de campo ajudaram a ampliar o clima de euforia, como as goleadas sobre a Suécia e a Espanha, quando torcedores entoaram a marchinha “Touradas em Madri”, de Alberto Ribeiro e Braguinha. O Uruguai, por sua vez, fez uma campanha modesta, com resultados suados diante de adversários que foram presas fáceis para o Brasil no quadrangular final.

– Pela primeira vez em uma Copa e em um momento decisivo, a Seleção vai a campo com altas expectativas de que seria campeã mundial. Um jogo que se esperava a vitória da Seleção e, por extensão, a vitória da nação brasileira – explica Leda.

Decepção e busca por justificativas

A derrota fez do Maracanã o “maior velório do mundo” naquela tarde. Todo o clima de convicção no título criou a necessidade de que o resultado adverso fosse justificado. Leda conta que a pergunta “por que a Seleção perdeu?” estava vinculada à busca de compreender se a nação também era considerada perdedora.

Por conta da necessidade de encontrar os motivos para a derrota, surgiram as justificativas e versões para a “tragédia”. A escassez de imagens televisivas da época originou um dos principais motivos para que a história seja recontada até hoje: a margem para a criação das mais diversas narrativas em cima do ocorrido.

– As tentativas de explicar a derrota foram muito incisivas no Jornal dos Sports, um dos mais lidos na época. Mario Filho, dono desse jornal, principal jornalista esportivo da época e alguém fundamental para o projeto da Copa, sobretudo em relação à construção do Maracanã, nutriu certa obsessão pelo tema. As narrativas dele são fundamentais para esse aspecto mítico da Copa de 1950 – explica a pesquisadora.

O ônibus que levava os jogadores enguiçou? Eles empurraram ou não? Flávio Costa mandou pegar leve ou não revidar agressões? Obdulio Varela deu um tapa em Bigode, como escreveu Mario Filho – e foi desmentido pelos jogadores? De acordo com Leda, não há nada comprovado.

– São histórias muito envolventes e que conseguiram lançar certos mitos ao longo do tempo. Mario Filho era um excelente narrador – destaca Leda.

Narrativas entram em jogo

Mario Filho assume mesmo uma posição de destaque nesse assunto. O jornalista reeditou e lançou em 1964 o livro “O negro no futebol brasileiro”, obra de grande importância para a compreensão do esporte desde sua chegada ao Brasil.

A nova edição do livro incluiu a derrota de 1950 e os títulos de 1958 e 1962. Além de Leda Costa, Ricardo Pinto, doutor em História Comparada e pesquisador do Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, aponta para o fato de que a obra é importante para o estudo da história do futebol, mas deve ser utilizado de maneira crítica.

– O problema é que o livro virou uma verdade absoluta sobre a história do negro no futebol brasileiro. É uma história contada de maneira realmente estruturada, tem a chegada do futebol, chegada do negro ao futebol, a luta e, posteriormente, a vitória. Quando mergulhamos nas fontes, vemos que não foi assim. Essa história romântica que ele criou não dá conta de explicar a complexidade nos diversos estados, tampouco no Rio de Janeiro. Mas isso não anula a importância do livro – explica Ricardo.

Também é importante ressaltar que o autor não tinha imagens a recorrer, portanto, interferências na elaboração na narrativa devem ser consideradas. Além disso, Leda Costa ressalta a habilidade de Mario Filho, assim como seu irmão Nelson Rodrigues, em elaborar narrativas.

– Ele antecipa a história oral como uma composição importante de fonte. Não poderia ter sido diferente na época. O livro foi possível, em grande parte, porque conta o que não se sabe, não se viu. Temos que, em parte, acreditar, mas também desconfiar, como qualquer história contada a partir da memória. Ele sabia transformar um momento corriqueiro em um momento mítico. Faz isso com 1950, com o poder das palavras e da imaginação – diz Leda.

Em 1970, com o Brasil já bicampeão do mundo, a final de 1950 foi revisitada por conta do reencontro do Brasil com o Uruguai em Copas do Mundo. As narrativas acabaram reelaboradas a partir de memórias, hipóteses e poucos fatos concisos – uma nova oportunidade de inflar essa história, como um telefone sem fio.

– As muitas versões da história são por conta da ausência de informação, preenchida com memórias e afetividades, dando essa dimensão mítica, o que torna a Copa de 1950 única. A imaginação melodramática está presente nas narrativas da imprensa e no imaginário dos torcedores. Vemos as narrativas de vilões e heróis, que são simplificadoras. Uma matriz melodramática é uma matriz polarizadora de heróis e vilões – conta Leda.

“Esse imaginário é muito presente no caso da Seleção. A vitória e a derrota são explicadas de maneira muito simplificada. Quando ganha, o herói vai ser louvado. Quando perde, geralmente a explicação vai se dar por conta de algum jogador ou profissional eleito como vilão”

“O perigo de uma única história”

Apesar das mais diversas versões, a busca por “culpados” pela derrota é uma das narrativas mais presentes no nosso imaginário até hoje.

Barbosa e Bigode foram culpabilizados na época, mas o peso da responsabilidade atravessou gerações nas costas do goleiro.

– Bigode foi facilmente esquecido, não tinha a mesma força do Barbosa. Ele era o melhor goleiro do país na época. A culpabilidade dele se agiganta por conta da imagem poderosa que tinha, e ela foi infelizmente anexada à derrota a partir daquele momento, com isso reforçado em 1970. Não podemos esquecer o fato de Barbosa ser negro. Ele vai representar, em grande medida, uma raça brasileira vista como frágil e perdedora – aponta Leda.

No livro “Quem tem medo do feminismo negro”, a filósofa Djamila Ribeiro destaca que grupos historicamente discriminados carregam estigmas e estereótipos criados por fenômenos discriminatórios. Por Barbosa ser negro, criou-se um estigma de que goleiros pretos ou pardos não seriam confiáveis – o que jamais aconteceu por conta de falha de jogadores brancos.

Para Ricardo Pintos dos Santos, a questão do estigma vai além da posição do jogador. O historiador explica que aspectos negativos vêm sendo atribuídos a atletas negros, especialmente aos que também eram pobres, ao longo da história do futebol brasileiro.

– Se procurarmos um mito fundador, ele antecede o Barbosa, porque está mais ligado ao homem de cor do que ao jogador propriamente dito. Naquele momento, houve um fato. Ele sofreu um gol que levou à derrota. Mas já havia uma vinculação dos aspectos negativos a esse grupo, que vem lá da construção do esporte. Nos jornais, podemos ver quais eram os modelos de torcedor e de atleta. Não eram negros. Eles já tinham uma representação carregando racismo e essa violência no campo das representações – diz Ricardo.

O fato de histórias da população negra serem muitas vezes contadas a partir de uma perspectiva negativa, faz com que os feitos positivos e toda a vivência sendo apagados. É justamente essa a crítica do rapper Emicida na canção “AmarElo”:

Apesar da história de Barbosa ser contada em grande parte a partir de um episódio negativo, o goleiro foi um dos maiores do futebol brasileiro. Com carreira de destaque no Vasco, ele conquistou o Sul-Americano de 1948 e seis Cariocas junto com o histórico “Expresso da Vitória” cruz-maltino. Só não foi convocado para a Copa de 1954 por conta de uma grave lesão.

A reivindicação de Emicida não foi pensada especificamente a partir de Barbosa, mas, sim, da maneira como a trajetória do negro no Brasil, de uma maneira geral, é contada nos livros de História.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie alerta o “perigo de uma única história” ou as diferentes versões de uma única história, na conferência TED Talks de 2009 (veja abaixo com legendas). Ela explica que insistir nas experiências negativas é superficializar sua experiência e negligenciar as muitas outras histórias que formam o indivíduo, fazendo com que a dignidade dele seja roubada.

Assim, Chimamanda afirma que “poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas fazê-la a história definitiva daquela pessoa”. É o que Ricardo Pinto dos Santos confirma citando como narrativas sobre o negro no Brasil e a trajetória de Barbosa são tradicionalmente retratadas.

– A história do negro que conhecemos nas escolas é a escravidão, o pós-escravidão, a libertação e a violência. É a sua dor, seu sofrimento ao longo da sua trajetória. É um massacre de histórias negativas quando, no fim das contas, temos histórias belíssimas e importantíssimas na constituição do próprio Brasil, que tiveram o envolvimento de homens e mulheres negras. Precisamos ampliar o olhar sobre a história que tem do negro. A partir disso, conseguiremos entender o Barbosa na plenitude. Porque o problema não é o fracasso do Barbosa, não é ele não ter sido eficiente, a questão é a gente vincular ele a somente uma jogada. Nós somos tudo isso e muito mais – finaliza Ricardo.