“Tio Zózimo: O rapto das penosas do Altamiro”

A rapadura é doce, mas não é mole, não. Na época, todo mundo pensava em ajudar a cidade crescer. O vereador professor Antenor tinha aprovado o projeto de arborizar as ruas. Deixar tudo verde. Protegido. Botaram na cabeça do Altamiro.   Buscar em Londrina, na Chácara do Ganchão um casal da mais forte, poderosa e poedeira raça de galinhas do Norte do Paraná.

Mas havia um obstáculo. Os Irmãos Licurgo dominavam o comércio de frangos caipiras. Não aceitavam ninguém ciscando no terreiro.  Mesmo assim, Tio Zózimo aceitou ir buscar as penosas com o Altamiro. Sabiam que os Licurgo iam sabotar, perseguir, destroçar. Enfim dar um jeito de acabar, no ninho, com as ideias empoleiradas de melhorar o DNA, e de quebra, melhorar a renda dos parceiros dos sítios.

Foram. Cheios de medo. Vendo fantasmas. Bandidos. Perigos em cada curva.

Nem bem percorreram dez quilômetros, antes de chegarem ao Distrito da Caixa São Pedro, se depararam com um enigma. Uma bifurcação. E agora? Para a direita ou para a esquerda? No susto, pararam para resolver. Nisso, saiu do meio cafezal em flor, num pulo, de cabelos longos, um vulto de barbas quilométricas, empunhando uma longa peroba fina, recém colhida.

Aquela figura maluca estacou na frente da Kombi. Braços e pernas abertas. Em X. Tio Zózimo encolheu-se. Só pode ser um jagunço dos Licurgo. Agora estamos fritos.

No auge do medo, Altamiro, no susto, garrou conversar com o vulto. Quer vender este cabo de enxada pra nós, tio? Gostei muito desta peroba. Excelente qualidade. E foi falando e desenvolvendo movido pelo pânico. Acabaram até oferecendo uma carona até o distrito do Pirapó para o estranho, em troca da informação do caminho certo.

Mas, antes de vender as penosas, Ganchão exigiu que os dois, Tio Zózimo e Altamiro percorressem uma mata fechada. Escura. Labiríntica. Mística. Duas voltas, para se conhecerem melhor. Controlar suas coragens e medos. Só depois é que alcançaram o direito de trazerem as galinhas.

Um todo dia cheio de sustos

Já era boca da noite, quando se aproximaram da cidade, de volta.  A Lua no céu era um ovo iluminado.  Lembraram-se dos conselhos de Jão Ródrix, consultado antes da viagem. Às vezes, o caminho mais longo é o mais seguro. Foi o que fizeram. Por isso, em vez de entrarem direto pela Rua Rene Táccola, pegaram a Estrada Vitorinha do Meio, até o final, subiram pela Vitória do Alegre, voltaram até o Lombo da Égua, subiram pelo caminho da Terra Roxa, caíram pelo Keller, tomaram uma variante da estrada até a Venda do Taubaté e vinham subindo pela Estrada Rochedo. A noite negra como as asas de um galo índio. Os dois plenos da experiência de dominar e driblar os medos.

Foi ali na subida da colônia dos Italianos que, de repente, sem menos nem mais, um Bernardão, laranja, jipe de 4 portas, cortou a passagem da Kombi amarela. O susto mesmo grande, não apavorou os dois.  Até as galinhas se controlaram.

E agora? Tio Zózimo pensou, administrando o medo. Um vulto de japona longa, chapéu de feltro furado por tiros de carabina, tufos de cabelo no nariz desceu do Bernardão. Meteu a cara na janela da Kombi. Vocês viram algum veículo estranho aí pra baixo. Rosnou despenteando os cabelos do Altamiro.

Tio Zózimo mudo, exercitando o jejum das   palavras. Não cacarejava nem piava. Altamiro ia quase se entregando, mas num instante de luz, falou. Desceu agora pouquinho aí pra baixo, na direção da Escolinha Rio Branco, um Toyota. Estava até com os faróis desligados. Inventava e tremia ao mesmo tempo. Se o galo cantasse três vezes, ele estaria morto.

Apressado o Bernardão partiu. Furioso, tossindo. Descida abaixo. Tio Zózimo, dono de si, na quarta tentativa conseguiu dar a partida. Os pedais da Kombi pareciam levitar. Apagou os faróis. Penetraram na noite escura. Tremiam de frio, na noite quente. O medo existia, mas sob controle. Ao longe, algumas luzes cruzavam a noite. Até chegarem à chácara do Altamiro.

Mas, ainda tinha mais. Outro obstáculo assustador. Um vulto. Encostado na porteira da chácara. Brasa de cigarro riscando a noite.  À Luz da Lua não dava para identificar. Congelados foram se aproximando. Conheciam os próprios medos. O que poderia acontecer?  Um tiro. Um sequestro das galinhas. Um revólver na cara. Tinham que chegar. O que poderiam fazer a não ser encarar?

Devagar. Foram reconhecendo o vulto. Era o mesmo tiozinho da Caixa São Pedro. Dizendo que tinha achado outro cabo de enxada. Se podia trazer pra eles. Tio Zózimo sentiu-se forte por ter dominado a vontade de abandonar tudo.

Não foi o último susto da noite. Cachorros correndo no terreiro. Faroletes vagando pelo pasto. Assovios misteriosos que se correspondiam. Passos à beira da janela. Uma noite de terror. Os dois aguardaram o sol nascer sem se mexerem. Malemá respirando para o medo não entrar pelos pulmões.

A partir deste dia, Altamiro teve que pousar cada noite num sitio ou chácara diferente. Sempre levando suas penosas preciosas. Nunca repetia o pouso.