“É preciso mais, muito mais”

A formação humana começa no momento da concepção. Já na barriga em estágio gestacional o feto se mexe, responde a estímulos, emociona a todos que participam da gravidez, e a celebração da chegada de uma vida. Há alegrias e regozijos, há bençãos, há boas aventuranças, há preparação. Há preocupação com o enxoval, com a escolha do nome, com os móveis, enfim com a chegada dos rebentos. 

E a sanha continua após o nascimento, vem o batizado, as festas de aniversário, que agora também exige uma celebração mensal, as formaturas, a festa de 15 anos, enfim há celebrações a vida toda e toda vida. Não que celebrar seja ruim, o crescimento deve ser festejado, sim. Entretanto, é preciso mais que tudo isso, é preciso ensinar o filho a respeitar, a amar o outro, a entender que nem sempre é possível comprar a roupa mais cara, ou o celular da vez. É preciso antes de tudo ensinar o filho a indignar-se com as tragédias, a respeitar a dor do outro, a pertencer a uma sociedade justa, sem ressalvas, que respeita, que aceita as diferenças. Não daqueles que enfiam a bíblia embaixo do braço, e lá no espaço sagrado, se portam como um cristãos.

Quando na verdade finge que não vê o que vem acontecendo nessa selva de pedra que nos torna cada vez mais virtuais, pedantes, donos da verdade, desprovidos de reciprocidade, de bom senso, de entendimento de que somos tão pateticamente pequenos, mesmo que a conta bancária seja polpuda, que o carro seja do ano, que a roupa seja da loja mais bacana, que o perfume seja importado, que todos os bens materiais foram mantidos desde pequenos.

É preciso muito mais que isso, é hora de sair das redes sociais, de olhar as pessoas, de sorrir, de dizer bom dia, de visitar o amigo, de tomar um sorvete, de fazer um macarrão, de reunir os parentes, de jogar conversa fora, de sentar no jardim, de contar as novidades, de ouvir uma música. É preciso buscar o sentido da vida, que na verdade, não tem muito sentido, mas que é uma presente de Deus.

Esse dias na sala de aula, um menino franzino, loiro, miúdo, adora comer, mastiga o tempo todo, me perguntou se era feio homem fazer serviço de casa. Me aproximei e questionei o que seria um serviço de casa, e ele me olhou sério e respondeu que era limpar a casa, lavar a louça, cozinhar. Então, perguntei, desses todos que você me elencou, qual deles você mais gosta? Ele sorriu, e disse que era cozinhar. Eu já sabia a resposta. 

Disse a ele que qualquer função que seja que desempenhamos tem um benefício, que se queremos comer bem, podemos aprender a cozinhar, se queremos uma casa limpa e perfumada temos que aprender a limpar, se queremos uma roupa limpa e cheirosa também devemos providenciar, já que temos braços, pernas, mãos e pés, justamente por que somos capazes de realizar muitas tarefas.

E que em países mais desenvolvidos todos da família colaboram para que todos tenham mais tempo livre, por que é libertador tirar o prato da mesa, arrumar a própria cama, lavar a louça suja. A vida é dura, é luta, e árdua, mas também é deliciosa. E ela pode ser prazerosa quando preparo um ovo mexido pra comer com café quente, ou quando lavo o banheiro e coloco tapetes limpos pra eu me deliciar num banho revigorante. E ele vira para o amigo e fala, falei pra você que essa professora fala da vida pra gente. 

Dias depois, ele narra um experiência que teve em casa, ao resolver algo como a troca de uma lâmpada, e eis que eu pergunto do pai do aluno falante, e ele me responde todo sorridente: meu pai tá preso, prô. Sorri e disse, parabéns, por que você é o homem da casa.

O sorriso que ganhei foi sensacional. Ontem na aula, ele trouxe um pacote de bolachas água e sal. Fingi que não vi, e ele me oferece as bolachas, agradeci e disse a ele que o lanche da escola estava muito bom naquele dia, que valia a pena esperar, e ele me responde que o estômago estava dolorido, e ele precisava comer as bolachas. E hoje, conversando com uma amiga querida que também trabalha com a turma, ele havia relatado a ela que não conseguiu almoçar por que a mãe ordenou que ele fizesse as tarefas da casa, e caso não terminasse, não almoçaria, e ele não tinha conseguido terminar o banheiro. Pensei no garoto, e na fome que ele sentiu.

É preciso ser forte para encarar uma sala de aula hoje. Digo que somos guerreiros, por que não se trata de ensinar as classes gramaticais, ou a diferença entre uma notícia e uma reportagem, ou a conjugação verbal. Vai muito além disso, por que esses meninos procuram fora de casa aquilo que não têm, eles trocam facilmente um pacote de bolachas por algo que momentaneamente os façam esquecer as mazelas da vida, que não basta celebrar o nascimento, se o crescimento é negligenciado. É preciso mais, muito mais que coisas, é preciso sentimento, diálogo, participação, troca, relatos e principalmente afeto.