O cachorríneo da história do Cavalinho

Canário!  Isso é nome de cachorrinho? Todo mundo perguntava ao conhecê-lo. Amarelo, manchas brancas, focinho preto. Não conhecia limites.  Percorria sítios e chácara. Todos os dias. Sem cerimônias, acrescentava territórios ao seu reino, diariamente.

Ninguém e todo mundo era dono dele.  Ou ele era dono de todo mundo? Não sossegava no lugar mais que duas horas. Deixava crianças com saudades e adultos com o olho comprido. Ia-se embora.   Na hora que bem entendesse. Conquistado os corações, partia.

Ninguém lhe dava obrigações. Já tinham entendido que Canário não levava o mundo muito a sério. Quantas vezes o tinham flagrado. Em vez de espantar os pássaros da horta, ele os atraía. Bandos. Em cantos diferentes o rodeavam. E cantavam para ele.

Na caça, retornava abraçado ao coelho, ou ficava de conversa com o tatu embaixo da peroba.  Buscar as vaquinhas? Perda de tempo.  Ele ficava com elas a noite toda na beira do rio.

Seu dia começava na Venda da Dona Penha. Subia na primeira carroça que passava. Não ia olhando para a frente. Queria mesmo era ver o que acontecia após ele passar. Certo de que deixava saudades.

Quando chegava ao Matão, parava.  Ficava aguardando uma carroça ou alguém.  Querendo voltar acompanhado ao início do caminho. Tinha vez que ia até às margens do Pirapó ou do Araçu. Mas, do Matão nunca passava.

O Além do Matão para ele era um mundo perigoso. O desconhecido. Achava melhor se resguardar. Ficar no seu mundo. Entre as Capelas Bom Jesus e São Sebastião.  Quem tinha criado essa lei? Não passar do Matão? Latia pensativo. Nunca que cruzava pro outro lado da mata.

Mesmo com  ele, assim, libertino, livre, libérrimo,  não demorou para o pessoal botar sentido. Canário desaparecera. Procuraram muito.  Desde os sítios dos Abramosk, Knupp, Borba, Manholer, Ribeiro, dos dois lados da estrada. Em vão.  Foi um nunca mais que doeu muito em todos. A tristeza de perdê-lo foi tomando conta de todos os sítios e famílias.

Jão Ródrix, que era conhecido por gostar de armar muitas  brincadeiras, dizia sempre um dia Canário vai voltar, vocês vão ver.  Ninguém lhe levava a sério por medo de cair em uma de suas pegadinhas costumeiras. E o tempo correu solto relógio a fora.   Canário  morando  vivo na memória de todos daquela Água.

Da boca pra fora. Por dentro, Jão Ródrix sabia. Lenda antiga. O dia em que Canário sumisse a harmonia e a alegria dos moradores, vizinhos, compadres, comadres da Água da Vitória ia desaparecer. Ele era o que mais procurava o cãozinho. Revirava sítios, beira de córregos, fundos de pastos.

Porque ele tinha uma dívida, uma culpa. Ele batera nos dentes. A lenda do cachorrinho Canário. Quando ele desaparecesse.  Pro Hermeto. Morador do Lado de Lá. Que vinha tentando faz tempo, seis meses, namorar a Deolinda, a mais linda da capela. A moça. Responsável pela liturgia.

Pois, foi o namoro não dar certo e o cachorrinho sumir. Como provar que o moço apaixonado. Da caminhonete preta. Que trazia presentes e comprava doces para todo mundo era o culpado pelo sumiço de canário?

Decerto ele judia do Canário ou bate nele toda vez que tenta fugir. Pior, Canário não sabe superar o limite do Matão. Mesmo que consiga fugir, vai ficar perdido naquela região pra sempre. Jão Ródrix sofria com esta culpa. Estes pensamentos não largam de mim, nem nas pescarias. Não contava pra seo ninguém a tristeza em que vivia. Só que o povo não é bobo, não. Todos viam que ele estava penando. Só não sabiam o porquê.

Sem se dar conta das culpas de Jão e nem sequer sabendo da sua existência. Numa primavera de dias muito quentes e noites chuvosas. A neblina cobrindo as estrelas. As luzes das cidades ao longe. Foi nesta indeterminada hora. Celly chegava ao pontilhão. O viaduto ferroviário.

Vindo de Maringá. Entrando na cidade. O farol do seu automóvel, o seu primeiro carro, captou um vulto. Um cachorro de pequeno porte. Assustado.  Tentava atravessar a pista.  Um relâmpago cortou a escuridão. Ela pode reconhecer. Será?

Amarelo ouro. Manchas brancas, o cachorro, idêntico. Cara de um, focinho do outro.  Igualzinho ao cachorrinho da história que seu pai lhe costumava lhe contar.  Para ninar. Nas noites da infância mandaguariense. Não teve dúvidas. Freou. Brecou. Recolheu o cãozinho assustado. Faminto. Sedento. Se não socorro, aqui acabava a história deste cãozinho, ela pensou.

Ao ligar a seta do carro, para retomar o caminho, uma picape toda preta fechou lhe o caminho.  Não titubeou nem bobeou, com um braço no volante e outro no freio de mão puxado, cantou pneus, e,  em alta velocidade, fez um x, ultrapassando o perigoso veículo que acelerou em seu encalço. Perseguição na altura da Romagnole.

O cachorrinho assustado olhava a dança dos faróis pelo para brisa traseiro. Ele gostava de olhar para trás.  Numa tentativa de fugir, Celly, ao chegar ao redondo, em frente ao PAM,  desistiu de seguir pela Avenida,  atravessou a pista, entrou pelo Jardim Cristina. Pelo retrovisor, viu seus perseguidores passando reto.

Aí, foi que a ficha caiu. Aquele perseguidor ou aqueles?  Estavam dando muito valor ao cachorrinho. Sem retirar os olhos dos retrovisores, sentiu que precisava chegar logo em casa, esconder o carro. Proteger o animal. Alimentá-lo bem.

Se lembrava bem da historinha que seu pai contava. O cachorrinho era o primeiro animal que o cavalinho encontrava quando saía lá do Final da Estrada Vitória e vinha, noite adentro, ganhando, reunindo outros amigos, o cabrito, o galo, o porco,  para passarem uma noite na cidade.  Poderem dormir longe das fadigas de tanto serviço.

Apagou todas as luzes da casa.  Alguns faróis de carro desenhavam seus reflexos na janela. Poderiam ser eles? Os perseguidores. Mas, por quê?  O cachorrinho devia estar fugindo deles fazia horas. Fez de tudo para escapar. E depois se entregou a ela tão docilmente. Estes pensamentos aqueceram a noite fria de Mandaguari.

No outro dia, tinha de ir trabalhar. Cedo pulou da cama.  Preocupada em alimentar o cachorrinho. Não ouviu nenhum latido. Onde estaria?  Procurou por toda a casa. Será que está no quintal? Também, não.  Fugiu? Foi sequestrado? Eles, os perseguidores, conseguiram roubá-lo?

Tinha de ir trabalhar. Não havia tempo para chegar a uma conclusão.

Na semana seguinte. Nova noite de neblina. Lá vinha ela, distraída. Ouvia  uma canção dos tempos do CEVEC.  O vulto do cachorrinho. Na beira da pista. Nem bem parou para recolher o bichinho, a caminhonete negra chegou. Foi, novamente, bem  difícil fugir.

Quanto mais observava cada detalhe  do cachorrinho, mais se lembrava da historinha de ninar. Era tão bom ouvir. Dormia sempre na metade. Será que seu pai sabia o final? Sempre conviveu com este enigma.

Tratou do animalzinho e dormiu preocupada. Fechei bem a casa desta vez? Se perguntou várias vezes.

No dia seguinte, nem se preocupou com o sumiço do cachorrinho. Parecia ter se acostumado. Foram muitas vezes, assim. Repetiam-se as cenas, da mesmo forma que a historinha de ninar se repetia noites afora.

Até que numa manhãzinha, retornando mais cedo para casa, chegando à cidade, viu o vulto canino, simpático. Parou repentinamente. Para protegê-lo de novo. Pela primeira vez, a caminhonete preta não apareceu. Então ela pôde entrar pela Avenida,  bem sossegada. Dirigindo tranquilamente. O cachorrinho olhando pelo para brisa traseiro. Como sempre.

Preocupada com os perseguidores, olhou pelo retrovisor. Uma Kombi amarela. Dois sujeitos acenavam desesperadamente.  Buzinavam. Malucos, pensou. Mas, parou. Eram Tio Zózimo e Jão Ródrix. Os dois ofegantes. Nem conseguiam falar.

Celly, mesmo suspeitando de algum rolo, teve calma para deixar os dois recuperarem o fôlego. De dentro do carro, o cachorrinho pulava. Desesperado ou alegre? Ela examinava as reações do animalzinho.  Não conseguia ter certeza.

O primeiro a falar foi Ródrix. Louco para se livrar da culpa. Moça, este cachorrinho é o Canário?  Percebendo que ela  fazia cara de não sei,  Tio Zózimo não se conteve. Faz tempo que a gente está procurando este malvado. Sumiu. É verdade, moça, disse Ródrix,  ele deixou muitas saudades.

Como Celly continuava desconfiando da história, Tio Zózimo trucou. Se a senhorita não confia em nós, você faz favor, vai com a gente lá.  Jão Ródrix, com medo de estar se iludindo com o provável encontro com Canário,  gostou da ideia e completou. Isso, você vai com a gente sítio por sítio, mostrando o Canário, eles vão ver!  Eu sempre disse que ele voltaria.

Com um olho no peixe e outro na frigideira, como se diz, Celly aceitou acompanhá-los. Mas, bateu o pé. O cachorrinho vai no meu carro. Ela torcia para que fosse, sim. E Jão Ródrix torcia mais ainda, não poderia ficar para sempre se martirizando. Sempre se culpava quando acontecia algo ruim entre os habitantes do lugar. Poderia ser falta do Canário.

E assim, foram. Kombi amarela na frente, e o carro vermelho atrás.

Entraram pela Estrada. O cachorrinho Canário , tenso. Apavorado. A Kombi deslizava entre os cafezais. E o carro só seguindo atrás. Quando chegaram ao Matão,  Canário não se conteve. Deu um grito que assustou meio mundo. Saltou pela janela. Caiu na estrada como se tivesse reencontrado seu caminho.

Tomou a dianteira. Correndo à frente da Kombi. Buscando não se sabe o quê. Bando de pássaros surgiram de todos os lados.  O  cachorrinho criava asas nas patas. Fez festas ao chegar aos Manholer, aos Ribeiro, aos Borba. Foi matando a saudade dele e de todos.  Até chegar na Venda dos Abramosk. Recebeu e deu carinhos.

Foi uma tarde cheia. Para não se esquecer nunca mais.  Tio Zózimo e Jão Ródrix não sabiam o que fazer para agradecer a moça. Ela, por seu lado, ficava cada vez mais espantada com o poder do cachorrinho de influenciar os corações.

Cada reencontro do Canário com  famílias da região, deixava Celly  mais  convencida da história contada por  Jão Ródrix e Tio Zózimo. Era certo deixar o cachorrinho com eles.   Era hora de voltar.  Não poderia levar o Canário consigo. Podia só fazer uma selfie. De vez em quando ela posta no Instagram. Saudades.