O campinho do América

Tudo conspirava para aquela turminha gostar de futebol. O Brasil era tri. Em cada região da cidade havia um campo.  Só passava um fusca ou Kombi na rua, a cada três horas. Todos moravam próximos. Todos os ingredientes.

Só o local para as primeiras partidas era muito improvisado. Embaixo de um abacateiro. No fundo do Depósito Verim. Meio torto o terreno. E curto. Tinha sombra, mas não era o ideal para desenvolver o talento futebolístico daquela turminha.

Também havia, numa esquina próxima, um antigo barracão abandonado. Misterioso. O povo da rua contava histórias cabeludas sobre o lugar. Contrabandos. Fórmulas secretas de guaraná. Sacas de chá. Fugas da Federal. Ninguém tinha sequer coragem de olhar através das frestas da madeira da parede.

Tudo isso formava na cabeça daqueles moleques um desafio. Ao entardecer, em frente ao depósito, sob o poste de luz da Copel, ficavam contando histórias de assombração e comentando sobre a dificuldade de não terem um campinho em condições para jogarem. Todas as outras turmas tinham. Menos eles.

Não se sabe quem foi o Colombo da turma. Mas, alguém viu o óbvio que nenhum via. Três datas, três lotes abandonados ali, no nariz deles. Em frente à fábrica de Móveis Fujiwara. Era só capinar o capim amargoso. Retirar as grandes pedras. Cacos de vidro. Aplainar. E bumba-meu-boi, jogar até matar as lombrigas. Que eram todos fominhas, até hoje ninguém consegue desmentir.

Foram dias planejando. Analisaram bem o terreno. Viram que daria certo. Enxadas e enxadões, cada um ia pegar em casa, escondido do pai. E as mães? Nossa. Elas eram a eterna vigilância. Como iriam capinar toda aquela área sob o sol forte de dezembro? As mães seriam bem capazes de aparecerem armadas com chinelas, espadas de são Jorge, cintas, relhos. Tudo mãe raiz.

Apesar do perigo reinante, armaram de desenvolver o trabalho entre as 14 e às 17 horas. Seria tarefa para vários dias seguidos. Neste horário, as mães estavam ocupadas, um deles garantiu, com cara de sábio.

No horário marcado, sob o escaldante sol de fim de ano, entre dez e quinze meninos, moleques, piás que não aguentavam levantar a enxada, mas com o sonho de terem seu campinho. Iniciaram os trabalhos. Suavam em bicas.

Já no primeiro dia, enquanto eles labutavam, passou alguém pela rua, na calçada do outro lado. Eles nem notaram. Mas, ele, o moleque observou tudo. E descendo em direção à Praça das Toras bateu com a língua nos dentes. Para outra turma de moleques. Mais encorpados. Mais vividos.

E acrescentou para fazer moral com o chefe. Inventou. Eles disseram que nós não poderemos nunca jogar lá. Se aparecermos por lá vai ser a pior viagem pra nós. Sempre era bom ter moral com o chefe para não apanhar. Por isso, ele inventou.

O chefe desta outra turma era, nada mais  nada menos,  que o mítico Sadrak.  Contavam-se histórias temíveis  sobre ele. Mesmo sem o conhecer, a turminha o temia. Frio e calculista. Mais crescido e musculoso.  Mascando um ramo de capim amargoso ele decretou vamos acompanhar o trabalho dos meninos de lá e no final vamos dar lhes uma lição que eles nunca mais se esquecerão.

Assim, foi, a cada dia, a turma do campinho avançava em seus esforços. Sempre depois de fazerem as tarefas escolares e as mães mergulharem nos trabalhos da tarde. Roupas, refeições, assoalhos.

E também, a cada dia, o espião aparecia, oculto, escondido, atrás de um poste da Copel, para avaliar e transmitir ao seu chefe, o Sadrak, o quanto haviam progredido na tarefa de construírem o campinho.

Era proporcional. Conforme o campinho crescia, crescia a ira do Sadrak. Piores ficavam as suas reinações. Queria vingança. Chegava a chutar quem estivesse perto dele. Raiva, ódio. Vão ter que nos enfrentar, gritava, chutando tijolos e pedras que aparecem pela sua frente.

No final do quarto dia, os meninos do campinho, depois de esconderem as enxadas e enxadões, sentaram-se novamente no meio fio, diante do armazém assombrado, e ali, satisfeitos, calcularam que com mais um dia de trabalho intenso, o campo estaria pronto. Definitivamente teriam seu lugar para desenvolverem-se futebolisticamente.

Iam ter o seu campinho. Como todas as outras turmas e times.

A mesma notícia chegou ao Sadrak. O espião era sagaz. Calculava tudo direitinho. Medo de levar uns pontapés caso não desenvolvesse bem a tarefa.

E, assim chegou o último dia de trabalho.  Até se dividiram em dois times  antes de empunharem as enxadas pela última vez. Assim, daria mais inspiração.

Mal sabiam que o outro grupo já estava de butuca. De tocaia.  No meio do capinzal das outras datas abandonadas. Sadrak mal conseguia conter seu grupo. Mas, ele queria aguardar o trabalho todo terminado. Aí o prazer da vingança seria dobrado.

E os guris do campinho na maior empolgação, nem viam ou percebiam a movimentação próxima que os ameaçava.

Conforme tinham calculado, às quatro da tarde, terminaram. Faltava colocar as traves. Saíram procurando quatro tijolos. Encontraram duas latas de tinta. Qualquer coisa sólida servia para definir o gol.

Os olhos do bando do Sadrak, iguais a periscópios, surgiam e sumiam por sobre o capinzal. Esperando a ordem do chefe. A gana de destruição crescia a cada segundo.

Pronto. O campinho estava. Traves. Linhas laterais e central muito bem demarcadas pelo solado da Conga. Um time de cada lado. Era a tão aguardada inauguração.

Bastou o primeiro toque. O primeiro lance. A voz do Sadrak ecoou. E o bando invadiu. O susto, o pânico no rosto dos meninos foram intensos. Nunca se teve registro de uma retirada estratégica tão eficaz, espontânea e rápida. Sem que os Sadraques se dessem conta os meninos do campinho desapareceram.

Em segundos cada um estava em sua casa. Disfarçando em redor do fogão. Sadrak ficou possesso. Queria enfrentamento. Queria guerra. Queria combate. Em quem ia descontar sua fúria? No espião? Ah, você me contou que eles eram valentões, que queriam me desafiar, né?  Foi nele e em outros três que Sadrak descontou toda sua decepção.

Não deu meia hora, os meninos, um a um foram retornando. Ressabiados. O terreno do campinho estava totalmente detonado. Os sadraques jogaram de um tudo. Latas vazias. Bacias velhas. Baldes antigos. Pedras, muitas pedras. Arrancavam do leito da rua que estava esperando asfalto fazia décadas. Galhos de árvores. Espinhos.

Nem precisou mandar. Cada um foi dando um jeito de ajudar na limpeza e na reconstrução do campinho. E ainda, naquela mesma tarde, mataram a vontade de  jogar. Até o sol se por. Até a Lua aparecer. Foi bonito. As mães talvez estivessem muito concentradas. Ou sabiamente, deixaram acontecer, tinham confiança nos moleques.  Eram 19 horas, horário de Brasília, e a bola ainda estava correndo. Era a inauguração do primeiro campinho do América.

Os valentões do final da rua nunca mais apareceram para perturbar. Mas, na cabeça de todos do time  o fantasma do Sadrak, como num filme de terror,  poderia reaparecer a qualquer momento.