Neil Gaiman vs internet: a briga diária do autor que explica a própria obra

Neil Gaiman é conhecido por criar algumas das mais celebradas obras da literatura nos últimos 30 anos, como Coraline, Deuses Americanos e Belas Maldições. Porém, nos últimos tempos, o autor britânico parece ter desenvolvido também o hábito de responder comentários enfurecidos nas redes sociais. Mais recentemente, o escritor dedicou um bom tempo a responder a pessoas irritadas com o elenco de Sandman na Netflix no mais recente capítulo de uma antiga luta contra a internet.

Veja bem, não é que Gaiman passe o dia inteiro batendo boca com trolls. Há anos, ele usa suas redes sociais para se aproximar dos leitores, com quem sempre manteve uma relação saudável. Seu lado “combativo” surge geralmente quando suas obras – e, especialmente, as adaptações – são colocadas em cheque por questões ligadas a preconceitos e restrição na liberdade de expressão.

Uma das mais lembradas respostas do escritor a uma controvérsia aconteceu no anúncio da série de Lúcifer. Inspirada na versão de Neil Gaiman para o demônio nas HQs de Sandman, a produção foi alvo de boicote pela associação One Million Moms, que pediu para que a Fox cancelasse a exibição de um produto (ficcional) que iria “glorificar satã” e retratá-lo como “um bom rapaz”.

O autor então usou sua página no Tumblr para lembrar que havia passado por uma situação parecida em 1991, quando uma associação anunciou boicote a Sandman por conta da presença de personagens LGBTQIA+. “Me pergunto se eles notaram que não funcionou da última vez”, concluiu Gaiman em tom de ironia. E de fato não funcionou, Lúcifer fez sucesso e criou um público fiel que segue acompanhando a série, que caminha para sua sexta e última temporada.

Anos depois, quando a Netflix anunciou que a série chegaria ao fim, Gaiman não apenas relembrou o boicote, como agradeceu aos responsáveis por tentar banir Lúcifer: “Vocês boicotarem e se posicionarem contra algo foi como uma garantia mágica de que vai florescer e crescer. Espero que vocês usem sua magia em Sandman em breve”.

Como o próprio escritor lembrou, essa não foi a primeira vez que lidou com boicotes e certamente não foi a última. Anos depois, uma outra associação foi contra Good Omens por questões como ter uma mulher fazendo a voz de Deus e retratar o anticristo como “uma criança normal com superpoderes”. Mas dessa vez, Neil Gaiman riu da controvérsia, já que a petição pedia para que a Netflix cancelasse a série — que é uma produção original da concorrente Amazon Prime Video. O autor até debochou da situação:

“Demonstrou que as pessoas que assinam petições para remover séries de TV não as assistem de verdade. Se alguém envolvido tivesse visto Good Omens, saberia que é uma petição boba (…) e saberiam que está no Amazon Prime.”

A controvérsia novamente não prejudicou a série e ainda ajudou a impulsioná-la. Gaiman classificou a confusão como a “mais incrível e efetiva ferramenta promocional que poderia ter imaginado”, já que a cada vez que o incidente fosse citado, acabaria “contando às pessoas que a série existe e onde elas podem assistir”.

Esses casos deixam claro que a mera ideia de censura é o suficiente para fazer o escritor se posicionar. Não que abaixo-assinados e boicotes tenham ameaçado de verdade a produção de Sandman, Lúcifer ou Good Omens, mas ele claramente se vê obrigado a rebater a acusação de que suas obras de ficção atentam contra as crenças das pessoas.

Por outro lado, a série do Amazon Prime Video também marcou o momento em que ele passou a responder aos críticos diretamente. O grande exemplo é um indivíduo que classificou a produção como uma “série de merda” por conta da “diversidade forçada” ao trazer Adão e Eva interpretados por atores negros. Respondendo diretamente ao acusador, Gaiman disparou:

“Sabe, quando pessoas que se autoproclamam ‘supremacistas brancos’ desligam Good Omens depois dos primeiros minutos e vêm ao Twitter me dizer isso, penso às vezes que reviews negativos são uma coisa maravilhosa e emocionante”.

A partir daí, retrucar esses comentários na internet se tornou quase um hábito para Gaiman. Especialmente porque as críticas se tornaram cada vez mais carregadas de preconceitos, como o próprio escritor notou com os primeiros anúncios no elenco do live-action de Sandman:

“Entendi. Então você quer Sandman sem as pessoas LGBT+ que estão nele, sem as protagonistas femininas, e sem as pessoas não-brancas? Você tem certeza que ainda será Sandman no fim das contas?”

Broncas como essa começaram a se mostrar constantes e sobraram até para os fãs brasileiros, que por muitas vezes se mostram “pessoas tentando ser mais espertas que Sandman, quando elas claramente nem leram Sandman”. Por mais fortes que soem essas palavras, elas têm fundamento, já que as reclamações vão desde a escalação de uma pessoa não-binária para viver personagem não-binário e até a contratação de uma talentosa atriz negra para interpretar o avatar humano de um conceito abstrato como a Morte.

A cada publicação, irônica ou furiosa, Neil Gaiman busca proteger sua obra de ser usada por pessoas interessadas em destilar preconceitos. O curioso, é que agora essa “batalha” acontece justamente contra pessoas que se dizem fãs de seu trabalho, mas demonstram não ter absorvido uma grande parte das mensagens. Não à toa ele adotou “leia Sandman” como mantra: as respostas para todos esses protestos raivosos estão nas HQs que ele escreveu há mais de 30 anos.