Babenco – Alguém tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou

Diretor de marcos do cinema nacional, como Pixote e Carandiru, Héctor Babenco lançava Brincando nos Campos do Senhor quando descobriu em 1990 um câncer que, segundo os médicos, lhe daria alguns meses a mais de vida. Em entrevistas, ele diz que acreditava que seu longa seguinte – Coração Iluminado, de teor autobiográfico, cuja produção se estendeu entre 1992 e 1998 – seria o último. Babenco conviveu 30 anos com o espectro da doença, até fazer Meu Amigo Hindu, este francamente autobiográfico, sobre um cineasta doente, seu décimo e último longa, lançado em 2016.

A condição antecipada do luto e a consciência brutal da brevidade da vida acabaram marcando os filmes de Babenco, argentino naturalizado brasileiro que, para além do câncer, nunca se sentiu de fato acolhido numa pátria que lhe desse o conforto existencial de pertencer. Dirigido pela viúva de Babenco, a atriz Bárbara Paz, o filme Babenco – Alguém tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou é preciso em identificar, então, o que afinal deu a este pária impermanente um porto seguro: o cinema e seus mitos, que Babenco perseguiu em seus filmes nas intermináveis buscas por imagens de impacto que se firmassem na memória, no mundo. Os filmes de Babenco não aceitavam meio termo porque assim ditou a urgência da existência.

O documentário de Paz se organiza como mosaico de imagens e é uma escolha feliz porque isso ressalta o forte do cinema de Babenco; muitas dessas sínteses visuais encontradas pelo diretor em seus trabalhos têm mesmo uma força que não depende tanto do contexto para ganhar autonomia: a cena da amamentação de Pixote, a Mulher-Aranha de Sonia Braga na praia, os detentos nus no campo de Carandiru, a dança também nua de Bárbara Paz em Meu Amigo Hindu, cantando na chuva. A escolha da atriz-diretora em inserir essa cena específica no documentário poderia parecer uma vaidade mas não deixa de ser uma cena muito emblemática: da busca de Babenco por se reconciliar com mitos do cinema americano, da crença no corpo despido como um atestado da verdade da imagem viva.

Nesses momentos, e na seleção que Paz e sua equipe de decupagem fazem dos materiais da cinematografia de Babenco, fica a sensação de que o cineasta e a atriz compartilham de um mesmo credo na arte. Não são raros no documentário os momentos em que Paz – aprendendo a mexer com a câmera, com o foco – emula um estilo de Babenco, na fluidez e na melancolia do gesto de câmera, no despudor em filmar a nudez. É um processo de tatear um estilo próprio, que a diretora não realiza por completo; fica evidente nas escolhas de texto confessional em off, comentários que surgem sobre as imagens de arquivo, que na hierarquia das coisas a história visual de Babenco tem prioridade ante o material que Paz filma. A escolha pelo preto e branco é uma solução elegante para equalizar o que é arquivo e o que é inédito pelas mãos da diretora, e isso reforça a influência de Babenco, do ponto de vista da narrativa.

O que se tem então é um documentário bastante evocativo do que tornou o cinema de Babenco particular, mas ademais não é tanto um filme sobre o olhar de Bárbara Paz. As cenas de intimidade do casal – que carregam consigo aquela invejável primazia do olhar “puro”, do acesso privilegiado – nunca vão muito além do encanto da trivialidade: é a visita ao médico, é a conversa informal sobre cinema, a rotina de viagens ou de descanso na sala de estar. Em tese essa intimidade dá a Paz uma autoridade sobre o que filma, mas o desafio do filme é olhar além do trivial, articular além do que se depreende na superfície, porque afinal é disso que trata a arte, e os filmes de Babenco tinham essa obstinada ambição de serem maiores do que a imagem dava a entender de imediato. As imagens da câmera de Paz têm dificuldade em ganhar essa autonomia no filme, e se elas adquirem sentido aqui é sempre numa dinâmica pareada com a obra de Babenco.

É por isso que as cenas em Hong Kong ao som de Radiohead que abrem e fecham o filme parecem despropositadas na hora de estabelecer um olhar sobre o mundo e sobre Babenco. É muito bonito o plano inicial, o zoom-out na janela, com uma baía de Hong Kong ao fundo, mas além do caráter estetizante qual seria a função desse plano? Foge a Bárbara Paz a mesma noção que Babenco tinha sobre as imagens precisas, não no sentido de escolher imagens carregadas de simbolismo, mas de escolher precisamente imagens com potencial de conexão com outras imagens, na criação de um painel dramático. Em Babenco o material inédito frequentemente fica solto para associações livres, dependendo das sensibilidades do espectador.

Obviamente não se exige que a estreante Bárbara Paz se revele um talento que rivalize com o objeto do seu documentário, mas ao fim de Babenco fica a sensação mesmo de que o forte do filme está naquilo que evoca e não necessariamente na forma como articula essas reminiscências. Por muitas vezes, Héctor Babenco encontrou traduções visuais para uma angústia profundamente latinoamericana, que se aproxima do autoflagelo, e o material inédito deste documentário, pontuado de platitudes da urbanidade e do cosmopolitismo, empalidece na comparação.