“Tio Zózimo: Planos e apelidos”
Começo de ano. Planos e promessas. Tio Zózimo havia garantido a si mesmo, comprar umas calças LEE, muito raras , só acessíveis aos rapazes cabeludos e descolados, que desfilavam, impetuosos, entre os pontos chiques da cidade.
Era um janeiro perfeito. O chicote do sol na pele. O reflexo áspero da placa da loja obrigando Tio Zózimo a pisca-piscar, mordendo a língua, enquanto girava o volante da Kombi amarela para entrar na Avenida Paraná.
Foi mesmo aí, nesta curva, que ele avistou pelo retrovisor, vindo da Rodoviária, Leovegildo, o primeiro a se aventurar a buscar calças LEE no Paraguai. Para revender. Mala cheia de encomendas. Pesadas. Um S andando. Era a crista da onda. A brasa, mora.
Há tempos, vinha juntando dinheiro para adquirir a sua. Com Etiqueta de um palmo gravada LEE. Ficar parecendo os playboys da cidade. Parados nas portas da Vasp, Bar Guairacá. O Canecão. Em grupos. Lambretas e Misturas Finas.
Ansioso para falar com Leovegildo, freou tão rapidamente a Kombi que fechou e assustou o motorista do trator Deutz, verde, da prefeitura, que puxava a carreta de recolher lixo da cidade. Quase foi um esparramo. Ia dando briga. A sorte foi que Seo Luizinho Sem-Braço chegou na hora e acalmou os valentões.
Tio Zózimo conseguiu se recuperar do susto, mas já ia perdendo de vista a possibilidade de comprar as calças que seriam seu passaporte para se mitidar na praça, no cinema, nas quermesses.
Gritou, então, o mais alto que pode. Leovegildo nem ligou. Tio Zózimo sentiu que estava montando num porco, pisando na bola, escorregando no quiabo. Todo mundo vendo sua gritaria e o outro seguindo como se nada acontecesse. De vergonha, buscava um buraco para se esconder.
Quem o salvou desta vez, do vexame, foi Billy. Explicando. Leovegildo tomou uma decisão. Só atende, agora, pelo apelido. Picolé. Nem adianta chamá-lo mais pelo nome.
Enfim, as sonhadas calcas LEE chegaram. Tio Zózimo resolveu estreá-las, logo. Subindo a Avenida para o passeio da Fonte Luminosa. Em frente ao cinema. Madri Lanches. Tip-Top. Estava na cara que iria igualar-se aos bam-bam-bans que circulavam de Lambreta e Gordini do ano.
No meio do caminho algo começou a incomodar. Parecia. Aquelas calças não eram ele. Seriam elas que iriam levá-lo ao reconhecimento social? As pessoas olhavam estranho. Será? Pior do que vestir uma roupa rasgada ou de uma perna mais curta que a outra. Sentia-se se diminuir e as calças crescerem. Sem alma. Vendido. Ridículo.
Precisava se reencontrar. Reconquistar sua personalidade. As calças estavam arrastando-o para um desespero cinzento.
Voltou correndo para casa. Trocou-se. Vestiu umas calças antigas. Feitas pela costureira da rua. Dona Hilda. Voltou a ser Tio Zózimo de novo. Ai, sim, sentiu-se digno de conversar, olhar e ser olhado. Gosto bom de ser gente.
A viola em cacos
Tio Zózimo sentiu. A viola em cacos. Nunca que tinha visto uma moça mocinha assim. De jeito. Maneira. Ela falava bobices. Misturava com filosofias profundas. Estudada. Diferenciada no jeito de abrir as conversas e fechar as conclusões. De desmanchar os cadeados das janelas dos mistérios do mundo.
Pro senhor por sentido. O passatempo que mais passava o tempo dela nas férias era conhecer as abelhas que circulavam nas hortas, pomares e jardins. Ervas doces, manjericões, avencas.
Ela catalogava sem bulir com as asinhas de nenhuminha delas. Só na contemplação. Depois vinha com uma conversa de liberdade, esperanças, depois retornava `as abobrinhas, aos pezinhos de alface, de meia volta, retomava os temas abstratos. Ia e vinha. Indo e vindo. Da romã a Platão, como se fosse daqui prali buscar água clara na mina.
Sem o drama é que a gente não consegue viver. Pois, foi. De tanto observar ela, a moça, Tio Zózimo garrou de sonhar platonices em níveis sentimentais. Suspiros ao luar direcionados a ela. Seria ele adequado aos mundos etéreos que ela construía nas asas das abelhas e nas páginas bordadas de filosofias rimadas e ficcionadas? Era o drama para Tio Zózimo encenar na dureza do palco da vida real.
E o etc foi que ao drama não bastou morar na cabeça de Tio Zózimo. Cresceu. Assombrou. Sobremaneira, quando descobriu por pirlimpsiquices que ela, a moça , era irmã, não só irmã, mas a caçula mais nova de seu amigo, o um um.
Perigando entornar o caldo do melado, Tio Zózimo chegou a conclusão. Não bastavam na vida as pétalas, o pólen e as patinhas cheias de cera colhidas na flor. Tinha de existir também o amargo escondido nas letras de músicas, nas rimas dos poemas difíceis, nas cenas dos contos atravessados de tão russos.
Tio Zózimo, no dramático da situação, caiu fora de si viajando, por dias, em canções, trovas e poemas, descobrindo mensagens escondidas. Répteis sub-reptícios. É preciso sofrer para saber interpretar a poesia das horas?
Foi assim que aprendeu a engolir o seco, o doce e o amargo. Recolher a linha sem o cerol das portas dos vagões da vida. Locomotiva sensitiva a berrar nas curvas dos cafezais. Que tudo só fica claro é quando as asas do sentimento se misturam ao meio de semana colorido por abobrinhas e cozido por aristotelismos. Desta forma, extraditou o amor, num AI-5 sentimental. Torturar-se não queria mais.
Enfim, o adeus foi só uma mãozinha acenando no para-brisa do vento para algo que só existiu, de verdade, no capítulo das invencionices ou nas cenas mal decoradas de uma novela. Assim se convencionou. No mais, fechou-se o palco. Tio Zózimo, sentido, guardou a figura da moça nas coxias do ventrículo esquerdo.
Ficando todos felizes para sempre. Menos o vendedor de ingressos que sempre torcia para uma tragédia no final.