Ó vinde, adoremos! O menino Deus ou o deus mercado?

-E onde você vai passar o Natal?
-Em casa.
-E com quem?
-Com ninguém.
-Nada programado para o dia 25, nem na véspera, na noite do 24?
-Na noite do dia 24 provavelmente vou estar dormindo.
O diálogo de fato ocorrido, a princípios do século XXI, tinha a mim como quem indaga e já não me lembro quem como pessoa que responde. 
O fato é que descobrir que existiam pessoas que não celebravam o Natal tal como eu o fazia ou nem mesmo de forma parecida, que não tiravam um tempinho para fazer uma coisinha se quer que fosse diferente me estarrecia. A festa maior da cristandade, o nascimento do menino Jesus, a chegada do papai Noel, a visita dos três reis magos, o peru assado, alguma coisa precisava ser celebrada e não existia em minha mente um espaço para a ausência de festa nesse dia. 
Quando anos depois me deparei com a ideia de ser a pessoa que não iria a lugar algum e não celebraria – ao menos não de maneira tradicional – o Natal, comecei a ruminar sobre a importância dos ritos e das simbologias para a comunidade humana e sobre a quantidade de apelos comerciais que foram e continuam sendo aplicados a esse momento.
Como todos devem saber, Natal significa nascimento. É uma palavra latina, natale, que em italiano mantém a mesma grafia e significado. O espanhol adotou a forma do latim tardio, nativitas, e por lá a festa se chama Navidad. Em inglês é Christmas, que também possui uma certa relação com o latim vulgar, Cristes messa, e depois missa. Não possuo informações suficientes para afirmar se se refere à missa de Cristo, como celebração ou a massa ou corporeidade de Cristo. 
No fim das contas, essa discussão sobre as palavras é para dizer que a origem do que celebramos a cada dezembro remonta ao nascimento de um menino que marcou a humanidade através de seus ensinamentos, propostas e práticas. No entanto, a Bíblia não faz menção ao 25 de dezembro. Também não há outros registros históricos que remetem à essa data. Como a tradição católica e muitos de seus textos se referem à Jesus Cristo como a luz do mundo e no hemisfério norte o solstício de inverno (dia mais curto do ano) se celebra entre os dias 22 e 25 de dezembro e no mundo romano havia uma festa nessa época para celebrar o sol invicto, adotou-se essa data, creio que a partir do ano 354 D.C. A festa pagã passou a ser a data da festa cristã e, há algumas décadas, tem intensificado seu caráter pagão. 
Explico-me: pelo menos toda a população ocidental ou ocidentalizada carrega na cabeça um “modelo” de natal, com comida farta, presentes, roupas novas, luz e festa. Agregam as musiquinhas, a neve (mesmo no verão escaldante) e um papai Noel com seu trenó e renas (quando foi que nos permitimos ser tão subservientes e adaptáveis a algo que não nos pertence nem por associações forçadas? Maldita imposição cultural, mas isso é tema pra outro artigo). Num mundo onde bens de consumo se tornam mais acessíveis e o comprar é associado com felicidade, as pessoas, já bastante tristes por suas rotinas extenuantes e pouco prazenteiras, numa vida um pouco sem sentido, sempre em busca de um ideal irreal, se entregam ao fascínio de uns instantes de realização, seja pela compra, pelo pacote recebido ou oferecido, a comida diferente na mesa, a roupa ou sapato novos no corpo, a foto nas redes sociais, a aceitação dos amigos. 
Na falácia de celebrar a amizade e a família, entregam-se a infinitos eventos sociais onde se come, bebe e se compra um pouco mais. Mas a pergunta é: onde fica o menino Jesus nessa história? Se o aniversário é dele e dele devemos copiar o exemplo, por que comprar tanto, correr tanto, comer e beber tanto? 
Uma das canções religiosas mais antigas sobre a celebração do Natal declara: 
Nasceu em pobreza, repousando em palhas
O nosso afeto lhe vamos dar. Tanto amou-nos!de ações para sermos considerados verdadeiras pessoas que celebram a grande festa.
Em 2019 me perguntaram: “Onde vai celebrar o Natal?” Minha resposta que não oferece atrativos, nem expectativas, nem produtos, nem viagens, nem comilança me trouxe paz. 
Paz na terra às mulheres de boa vontade.