“A poesia dos Racionais vai à Universidade”

De 1997 para cá a música brasileira não pode mais ser considerada a mesma. Naquele ano, o grupo de rap Racionais MCs lançou o revolucionário “Sobrevivendo no Inferno”. O álbum vendeu um milhão e meio de cópias. Com 12 faixas, o icônico disco já era relevante para a cultura brasileira marginal, aquela que não tocava e ainda não toca nas FMs. Mas, agora, a situação mudou. Em 2020 a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) cobrará o conteúdo do álbum no vestibular.

O “Sobrevivendo…” foi catalogado como leitura obrigatória na categoria poesia. O álbum está ao lado dos “Sonetos”, de Luís de Camões, e de “A teus pés”, de Ana Cristina César.

A editora Companhia das Letras, então, transformou o álbum em livro – para facilitar a leitura e, claro, vender! Neste ano, o “Sobrevivendo no inferno” foi lançado em obra física. As 12 letras do disco estão lá, além de fotos e um artigo sobre a importância do álbum.

O que é possível destacar do livro?

Os Racionais MC’s surgiram em 1988 em São Paulo. O grupo é formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e Kl Jay, e é considerado uma das mais importantes vozes do rap no Brasil.

Pensemos nas letras de “Sobrevivendo no inferno” a partir de agora…

O que a gente vê ali é a poesia do dia a dia da periferia de São Paulo: o contato com o crime, a necessidade de evitar fazer coisa errada para não ser preso, a realidade da cadeia, a relação com as diversas religiões que chegam e chegavam à favela: católica, umbanda, protestante.

O fato de ser escolhido para um vestibular é um grande passo para a sociedade: é mostrar que a academia está se abrindo para a periferia, para grupos que sempre foram marginalizados. Por isso que escolher o “Sobrevivendo” foi um acerto.

O rap, diferentemente de outros gêneros, muitas vezes não tem refrão. É uma história contada – quase uma epopeia, no caso dos Racionais. O livro mostra isso. A primeira canção, terceira faixa do álbum, chama-se “Capítulo 4, Versículo 3”. Nela, o eu-lírico fala sobre a própria vida e de como é difícil ser negro na periferia:

 “Para os mano da Baixada Fluminense à Ceilândia/ Eu sei, as ruas não como a Disneylândia/ De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro/Ser um preto/ A custa caro//”.

E depois:

Permaneço vivo, prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística/ Seu comercial de TV não me engana/ Eu não preciso de status nem fama/ Seu carro e sua grana já não me seduz/E nem a sua puta de olhos azuis/Eu sou apenas um rapaz latino-americano/Apoiado por mais de 50 mil manos/Efeito colateral que seu sistema fez/ Racionais, capítulo 4, versículo 3//”.

No primeiro trecho, o que lemos é a necessidade do consumo do negro para se sentir parte de uma sociedade. Depois, o eu-lírico mostra que, apesar o sistema marginalizar o negro – o que o levaria ao crime, por exemplo –, ele contraria o caminho natural. E sobrevive.

Ainda marginalizado, o rap, muitas vezes, é chamado de porta-voz do crime. Há casos e casos, claro. Mas o que lemos em “Sobrevivendo” é um recado claro: o crime não compensa. Exemplos são as músicas “Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”. Essa última, aliás, tem um morto como narrador.  O eu-lírico, um negro, foi assassinado e nos conta isso. Ou seja: é defunto-autor, assim como fez Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1881.

“Diário de um detento” é o relato de um homem que está preso no Carandiru. Ele conta como foi o dia em 2 de outubro de 1992, o dia do Massacre. É uma descrição fortíssima – que, segundo consta, foi escrita por Mano Brown e Jocenir, um então detento do Carandiru. A letra passou pelos detentos da cadeira, para ser aprovada.  Essa canção, aliás, tem uma estrofe que deve ser uma das mais potentes da história da música brasileira:

“Ratatá, mais um metrô vai passar/Com gente de bem, apressada, católica/Lendo jornal, satisfeita, hipócrita/Com raiva por dentro, a caminhada do centro/Olhando para cá, curiosos, é lógico/Não, não é, não, não é zoológico/Minha vida não tem tanto valor/Quando seu celular, seu computador//”.

Como a sociedade não costuma pensar no detento como uma pessoa, quem está lá vale menos do que bens de consumo. É ou não é a sociedade de consumo descrita a partir de um rap?

E o que isso tem a ver com o vestibular?

O fato de uma universidade do porte da Unicamp adotar o “Sobrevivendo” é um caminho sem volta. É mostrar que o que é periférico é importante nesse Brasil tão desigual. Desse livro/álbum, destacamos algumas características que podem ser cobradas na prova.

  • As gírias utilizadas, mostrando variações linguísticas, diferentes da chamada norma culta;
  • A representação do negro: ele como o protagonista da própria história;
  • A poesia como parte da canção popular – e aí vale lembrar que temos o cordel, que é uma história contada, algo que veio de Portugal mas é tipicamente brasileiro.

Aos que torcem o nariz para o rap e para o fato de uma universidade se abrir para o “Sobrevivendo no Inferno”, apenas uma constatação: Dois dos livros que fundaram a cultura ocidental são poemas longos, que nasceram de forma cantada e só anos depois foram escritos: Ilíada e Odisseia, de Homero.

Vida longa aos Racionais MC’s, ao rap, à cultura periférica.

 

Victor Simião é jornalista. Atua como repórter e colunista de literatura na rádio CBN Maringá. Colaborador fixo do portal Homo Literatutas, já escreveu para diversos veículos como o jornal “Rascunho”, o mais importante periódico literário do Brasil.