Um ciclo vicioso a ser percebido e combatido

Artigo escrito por João Flávio Borba* e publicado na 400ª edição do Jornal Agora

Na década passada, tive a boa oportunidade de trabalhar e conviver com famílias da agricultura familiar em diversos municípios na região noroeste do Paraná.

A convivência com as comunidades era semanal e, em muitas delas o retorno era quinzenal. Não por poucas vezes se cria vínculos com as pessoas dessas comunidades, e quando se tinham reuniões, festas ou velórios, eu marcava presença, pois esse último também é um evento de reunião social sem plano prévio. Uma dessas comunidades, com cerca de 50 famílias, ocorreu cerca de 10 falecimentos nos últimos anos. Quase metade delas foi por alguma forma de câncer ou de doenças relativas ao sistema endócrino (fígado, pâncreas…). Nenhuma delas jamais esteve registrada n’alguma certidão de óbito de que as doenças estavam ligadas às intoxicações por venenos agrícolas. E as doenças relativas ao câncer muito menos estão associadas oficialmente a estas exposições. Mas sim, não há dúvidas, quase todos os óbitos dessa natureza estão associados a isso.

Recentemente, uma colega de trabalho, relatou o drama vivido durante um mês, onde o seu filho, jovem de 23 anos e saudável, passou a ter desconfortos intestinais crônicos. A enfermidade avançou e, após exames, ele teve que passar por uma cirurgia de emergência para retirar uma “massa crescida” entre seu intestino delgado e grosso. Estava na UTI e felizmente evoluiu para o internamento de quarto. A biópsia ainda não tinha resultado para saber se seria cancerígeno ou não.

Descrevo rapidamente essas histórias tendo a certeza de que os leitores tem conhecimento de casos similares. Não é uma exclusividade do Brasil, mas vivemos uma epidemia de uma doença ainda incurável, mas que é impulsionada por um modelo de produção agropecuário dominante, que se diz tecnológico, popular e totalitário: o famoso Agronegócio.

Ai de qualquer um apontar-lhe o dedo. Parece um herege contra os poderes totais da Idade Média. A justificativa será sempre da rentabilidade econômica, de carregar o país nas costas. Não há dúvida que em economia há saldos positivos. Mas o que é velado é de que essa rentabilidade é profundamente concentrada principalmente para algumas empresas transnacionais que dominam a cadeia dos venenos, dos adubos, das sementes e da mecanização. São cerca de 70% que fica concentrado nesse topo da pirâmide. E isso significa que é um capital que vai embora da região da produção da matéria-prima e até mesmo do país. Apenas 2% da rentabilidade é voltado para a sociedade através de impostos. Esse mito de carregar o país nas costas gerou uma série de benesses a esse setor, como por exemplo a isenção fiscal sobre os agrotóxicos (venenos) há mais de 20 anos.

Nas regiões interioranas do país fica o rescaldo da miséria e da destruição ambiental. Por exemplo, o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de cidades no interior do Mato Grosso, predominantemente do agronegócio, como Sinop, é relativamente baixo comparado à riqueza produzida nesses locais (PIB). Esse dinheiro está concentrado e em sua maior parte não fica nos locais. Os municípios ficam subdesenvolvidos.

O ar, as águas e os alimentos sofrem contaminações do alto índice de venenos utilizados pelo modelo do agronegócio e esse ônus, sim, fica com toda a sociedade.

A origem da epidemia do câncer está aí. E ninguém está isento dessas contaminações. Enquanto a sociedade, que em sua grande maioria é composta de trabalhadores e trabalhadoras, não perceber de que ela é impactada negativamente por essa cadeia produtiva, que esse impacto é para gerar uma economia concentrada para poucos e que ela não é beneficiada nem economicamente e nem em seu bem-estar; tende-se a continuar morrendo, encurtando a vida, deixando-se de se realizar enquanto ser humano.

O exato cenário que vivemos por esses dias é o de que o projeto oponente, contestador dessa realidade predominante, representada por agricultores familiares e camponeses, que produzem alimentos sem uso de agrotóxicos, tendem a sofrer uma investigação de uma CPI (com fortes indícios de ser inconstitucional) no Congresso Nacional. Agricultores que, inclusive, se dispuseram a doar alimentos às comunidades carentes durante a fase mais severas da pandemia do coronavírus. É claro que é a bancada que defende o Agronegócio (e todas as suas contradições) que está impulsionando essa CPI. Essa é a representação majoritária que temos. Gente eleita e reeleita com a força e os interesses desse setor.

Fica o desafio de se instalar a CPI do envenenamento da água, dos alimentos e da epidemia do câncer no Brasil. Será que encontrariam responsáveis?

Mandaguari e seu povo, ao largo dos seus 86 anos, também já foi vítima direta e indireta de tudo isso.

Enquanto povo, se não trouxermos como princípio e valor, de que riqueza não é acumular dinheiro, mas sim ter água saudável, alimento saudável, natureza equilibrada, dignidade humana e justiça social, não romperemos com o ciclo que nos aprisiona.

*João Flávio Borba é Engenheiro Agrônomo. Nascido em Mandaguari. Residente em Marialva.