2018: a cada cinco dias, uma mulher foi vítima de violência em Mandaguari

O número de denúncias de violência contra mulheres aumentou quase 30% no ano passado. Foram mais de 92 mil ligações para a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – o Disque 180. A situação fica ainda mais desesperadora quando temos acesso a um levantamento realizado pelo Datafolha, que apontou que a cada hora, 500 mulheres foram agredidas no Brasil em 2018.

Porém, não estamos mais em 2018. Um novo ano começou, mas as coisas não mudaram. No último trimestre, inúmeras notícias de violência contra a mulher circularam redes sociais. Mulheres foram agredidas nos mais diversos lugares do país e em Mandaguari não foi diferente.

Somente no sábado (16), foram três ocorrências registradas pela Polícia Militar. Mas não é de hoje que o número de casos tem chamado a atenção dos moradores. Em um dos grupos da Agora Comunicação no Whatsapp, um leitor chegou a afirmar que “a sensação é de que todo dia uma mulher apanha em Mandaguari’. E nós concordamos.

Porém, quando buscamos os números oficiais, percebemos que eles parecem não condizer com a realidade. Os números da Polícia Militar indicam que em 2018 foram registrados 44 casos de violência doméstica na cidade. Neste ano, esse número já chega a nove. O Jornal Agora entrevistou o comandante do 2º Pelotão da Polícia Militar de Mandaguari, tenente João Marcos Dutra, que explicou por que os números parecem tão baixos se comparados com as ocorrências noticiadas diariamente.

“Esses são números de encaminhamentos. Ou seja, que o agressor é levado à Delegacia para prestar contas pelo que fez. O que acontece é que na maioria das vezes a equipe chega ao local e o homem já saiu de lá. Realizamos patrulhamentos e, quando não localizamos, a vítima acaba sendo apenas orientada”, disse.

Em um levantamento realizado pelo Jornal Agora, chegamos ao número de treze ocorrências relacionadas à violência contra mulher. Ou seja, em quatro casos o autor das agressões deixou o local antes da chegada da PM.

Outro ponto abordado pelo tenente foram as circunstâncias em que as denúncias podem virar encaminhamentos. “Após a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), não é mais necessário que a vítima denuncie. Hoje, qualquer pessoa que testemunhar um caso de agressão, pode entrar em contato conosco. A equipe policial sempre avalia possíveis lesões deixadas na vítima. Porém, se a mulher não apresentar nenhum ferimento, mas a equipe sentir que ela está correndo risco, o homem será encaminhado. Depois disso, a soltura do acusado só é feita mediante fiança”, esclarece.

Quando questionado sobre o fato de algumas mulheres se omitirem e tentarem proteger os companheiros, mesmo sofrendo agressões, Dutra confirma. “Infelizmente isso acontece. Algumas mulheres, durante a prisão do homem, se desesperam e tentam dizer que não foi agressão, que é um engano. Outras chegam a pagar a fiança para que o marido ser solto. Mas nesse caso, nós temos que entender que se trata de uma relação abusiva, permeada pelo medo. ”

“Esse tipo de violência sempre existiu. A diferença é que hoje em dia a mulher está mais encorajada para denunciar. Entretanto, eu acredito que os números que temos ainda não são reais. Muitas mulheres continuam com medo de represálias, de ameaças do marido e ainda continuam com o agressor, infelizmente”, finalizou.

Números assustadores

O JornalAgora.com teve acesso ao número de inquéritos de ameaças e agressões registrados na 55ª Delegacia de Polícia Civil. Os casos abrangem casos com ameaças e/ou lesões.

Somente no ano passado, uma mulher foi agredida ou ameaçada em Mandaguari a cada cinco dias. Confira todas as informações em gráficos disponíveis ao final da reportagem.

 

Lugares de acolhimento

Creas

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) é um dos órgãos que realiza o atendimento de mulheres vítimas de violência em Mandaguari. Coordenado por Maria de Lourdes de Almeida Paes, o local recebe em média 40 mulheres para acolhimento e, posteriormente, encaminhamento à demais órgão de atendimento. “O Creas acaba sendo uma porta de entrada, pois a mulher vítima de violência chega até nós por demanda espontânea ou encaminhada de órgãos jurídicos. O que nós fazemos é um trabalho psicossocial. Ou seja, a psicóloga, Aline de Freitas Castanho, e a assistente social, Maria Estela Flora Bossato, acompanham essa vítima”, conta.

Ainda de acordo com a coordenadora, o Creas tem grupos de mulheres, que recebem assistência jurídica e psicológica. “Nas orientações que damos às mulheres, buscamos esclarecer o que ela pode fazer legalmente, como registrar o um boletim de ocorrência, pedir medida protetivas em casos mais graves e, se a mulher quiser fazer psicoterapias, encaminhamos às Unidades Básicas de Saúde, que são os locais onde essa mulher será atendida”, esclarece.

Outra atividade oferecida pelo órgão são as oficinas, mas que infelizmente tem um número baixo de adesões. “A cada 30 mulheres que atendemos, apenas 5 participa de oficinas como a de crochê, por exemplo. ”

Um ponto abordado por Maria de Lourdes foram as demandas que hoje se tem em Mandaguari no que diz respeito a mulheres violentadas. “Há algum tempo estamos sentindo a necessidade de se ter um espaço para acolhimento dessas mulheres, algo como uma casa mesmo. Pois não são raros os casos de as mulheres agredidas terem que voltar para debaixo do mesmo teto que o agressor. Mas essa é uma questão difícil, que tem que ser muito bem estudada e elaborada mesmo. Infelizmente as coisas não dependem só na nossa vontade, da necessidade. Para essa casa ser um ponto positivo, ela tem que ser um lugar de acolhimento, seguro, garantido. E é isso que buscamos”, conta.

 

Trilhando Novos Caminhos

A iniciativa é antiga, mas foi somente no dia 21 de janeiro deste ano que saiu do papel. O grupo socioeducativo “Trilhando Novos Caminhos” tem uma proposta ótima: oferecer aconselhamento psicológico e jurídico para homens agressores. A frente da iniciativa está Gisele Knupp, coordenadora do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), e as assistentes sociais, Vilmara Gouveia e Oriana Perin. Através de uma parceria do com o poder público e judiciário, há dois meses um grupo de cinco homens se reúnem semanalmente para refletirem não só sobre seus atos, mas também sobre suas histórias de vida. “Pensamos nesse projeto justamente por que, em casos de violência, apenas as mulheres eram aconselhadas. Os homens cumpriam determinada pena e ficava por isso mesmo, não havia uma reflexão por parte do agressor em relação ao que ele fez. Hoje, conversando com os homens que atendemos, notamos a maioria continua no relacionamento com a mulher que agrediu. Percebemos que não adianta cuidar e aconselhar apenas a mulher. O agressor também precisa entender que as atitudes dele não podem continuar”, explicam.

São encaminhados homens não-reincidentes e cujas agressões foram consideradas leves. Nos encontros, são tratados assuntos diversos. “Começamos com uma tentativa de descobrir qual a raiz da violência, levar eles a questionarem porquê eles agiram daquela forma, e isso comumente é feito com uma análise da vida desse homem. Nos fica claro que esses homens também foram vítimas de violência em algum momento. Lógico que isso não justifica a agressão, de forma alguma. Mas quando ele percebe que está fazendo sua parceira sofrer da mesma forma que ele sofreu anos atrás, fica mais fácil encarar a situação, se curar dos traumas do passado e começar uma mudança”, contam.

O grupo terá 13 encontros, cujas temáticas estão interligadas. “Começamos tratando a questão da violência estrutural, passando questões jurídicas, psicológicas e sociais. Ou seja, cada encontro tem uma abordagem diferente, para que o homem veja que em todas as esferas sua atitude não está certa. O principal, ainda, é fazer entender que a violência não é apenas física, mas também moral, sexual, verbal, psicológica. Enfim, são várias formas de se violentar alguém. Valorizamos muito uma reflexão sobre o papel do homem e da mulher na sociedade”.

Quando questionada sobre o fato de algumas mulheres continuarem com seus agressores, Gisele foi incisiva. “Não cabe a nós julgar. São inúmeros os fatores que interferem na decisão da mulher. Família, filhos, questões financeiras, ameaças que ela pode estar sofrendo há anos. Vejo muitas mulheres sendo agressivas umas com as outras, reafirmando esse discurso que tem mulher que gosta de apanhar. Isso é desumano! Não sabemos o que se passa com aquela pessoa, apenas que ela é vítima e que precisa de ajuda, precisa ser encorajada a sair desse relacionamento, não de críticas. Isso sem falar que muitas das mulheres que falam isso, também estão em um relacionamento abusivo e não sabem. Quanto mais buscamos saber sobre relacionamentos e quando eles são tóxicos, fica claro que é algo comum, infelizmente.

Aos homens que agrediram mulheres, que são violentos e desejam receber aconselhamentos, fica o convite. “Nós estamos à disposição para recebe-los para conversar sobre isso. Acreditamos que todos têm o direito de refletir sobre suas atitudes e principalmente mudar. Nunca é tarde para mudar”, finalizam. 

 

Quando o amor vira dor

A mandaguariense Maria* tinha 24 anos quando começou a se envolver com o homem que, anos mais tarde, transformaria sua vida em um inferno. “Nos conhecemos em um bar e começamos a namorar. Logo engravidei e ele demorou um ano para registrar a nossa filha, pois achava que não era o pai da criança. Inevitavelmente fomos morar junto depois disso e tudo começou a complicar. Ele saía de madrugada, bebia e chegava em casa transtornado, quebrando tudo. Mas até então ele nunca havia tentado me agredir fisicamente, só verbalmente mesmo, com ofensas”, conta.

Entretanto, a forma como o relacionamento caminhava e a vida que levava não estava agradando Maria, que pela primeira vez registrou um boletim contra o marido. “Infelizmente, não levei a diante. Minha filha era pequena e começou a ter crises epilépticas, muito por conta do clima que via em casa e da ausência do pai. Eu resolvi aceitar ele de volta, mas pensando na minha filha que sofria com a ausência do pai. Foi então que anularam minha primeira medida protetiva contra ele. ”Após cinco anos, veio a segunda gravidez. Desta vez de um menino. “Eu aguentei até quando deu, mas logo decidi pela separação. Faz três anos que me separei, mas apenas seis meses que finalmente tive paz, porque mesmo depois do divórcio, ele continuava frequentando minha casa. Ia com a desculpa que não tinha onde ficar, que precisava comer, tomar banho, ver os filhos, mas em todas as vezes chegava com a intenção de me agredir”, relata.

Desde então, tem sido muitos os registros de agressão que Maria tem sofrido. “Certa vez eu estava recém-operada e ele chegou na minha casa, me agredindo. Após as agressões, ele quebrou meu celular e me trancou dentro de casa, com as crianças. Fiquei caída no chão gritando por ajuda, junto com meus filhos. Os vizinhos tentaram me tirar de lá, mas não deu certo. Quando ele voltou e abriu a casa, me entregou as chaves, meus filhos começaram a chorar, pedindo pelo amor de Deus para eu não chamar a polícia para os pais deles”, relembra.

Maria finalizou sua emocionante história contando que as marcas não foram só nelas, mas nos filhos do casal também. “Meus filhos estão na fila de espera, aguardando para começar um tratamento psicológico. Meu filho mais novo ama o pai, eu não posso falar nada de ruim do pai que ele não gosta. É uma criança extremamente complicada, agressiva. Estou aguardando para ser ouvida e solicitar uma nova medida protetiva. Desta vez vou até o fim. Ele já foi até meu local de trabalho para me agredir, já agrediu tanto eu quanto outra pessoa com quem tentei me envolver. Eu vivo uma vida de insegurança, pois a todo momento ele pode aparecer. Eu vivo com medo. ”

 

Palavras também ferem

“Qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. ”

É assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência psicológica, a mais comum quando se trata de agressão à mulher. Diferentemente do que se acredita, a violência psicológica também deixa marcas nas mulheres, podendo prejudicar a saúde física e mental de quem sofre.

Apesar de comum, a psicológica é o tipo de agressão mais difícil de se identificar. Isso por que na maioria dos casos, a vítima não percebe que está sendo violentada. Algumas mulheres não conseguem notar que são massacradas pelo ciúmes, controle, humilhações, ironias e ofensas do parceiro.

Esse é o caso da mandaguariense Ana*, uma jovem que há dez anos está em um relacionamento abusivo. “Ele nunca me agrediu fisicamente, mas a dor é como se fosse. Desde o começo eu sou humilhada e maltratada. São xingamentos e apelidos que me machucam demais. ”

As agressões psicológicas não deram uma trégua nem durante a gravidez, que costuma ser um momento especial para todo casal. “Ele me chamava de gorda, ridícula, horrorosa. Dizia que ninguém iria me querer por conta das estrias que tive após a primeira gravidez”, relembra.

Outro ponto retratado por Ana eram as diversas proibições que sofre desde sempre. “Ele me proibia de usar determinadas roupas, sempre dizendo que sou feia. Comecei então a trabalhar, comprar as minhas roupas e pagar minhas contas, mas aí tudo piorou, pois veio o ciúme obsessivo. Ele me seguia toda vez que eu saía de casa e, nos dias em que eu recebia meu pagamento, pegava todo meu dinheiro, dizendo que eu gastava demais. ”

Cansada de passar por aquela situação e, para piorar, ter o filho presenciando todas as brigas, Ana decidiu fugir. “Eu tentei pedir ajuda, contei tudo para uma parente próxima, mas ela não acreditou em mim. Tive que ouvir dela que se eu já havia escolhido ele, deveria ficar com ele até o fim. Foi então que vi que estava sozinha com meu filho e decidi fugir, pois essa foi a única saída que encontrei”, relembra.

Os planos foram frustrados com a segunda gravidez. “Era meu sonho ter uma filha, mas tudo virou um grande pesadelo. Além de saber que minha filha também viria ao mundo em uma família cheia de conflitos, meu marido descobriu meu plano. Ele disse que, se eu fugisse, ele tiraria as crianças de mim. Nunca me esquecerei do dia em que ele me ameaçou, dizendo que ele me encontraria em qualquer lugar para onde eu fugisse e que então faria o pior comigo e com meus filhos”, conta.

A segunda gravidez de Ana foi diagnosticada como de alto risco e a jovem teria que pagar por uma cesariana. O marido se negou a dar o dinheiro. “Quem vê nossas fotos nas redes sociais ou nos vê na rua, não imagina pelo que passo. Por fora sorrio, mas por dentro estou um caco. Só eu sei a tristeza que é minha vida, mas sigo vivendo um dia de cada vez e cuidando dos meus filhos. Choro todos os dias por medo e por raiva de mim mesma, pois eu não consigo dar o primeiro passo”, finaliza.

 

* Visando proteger a identidade das vítimas, as duas mulheres cujas histórias foram relatadas nesta matéria tiveram seus nomes alterados.

 

 

EM CASO DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER, DENUNCIE!

CENTRAL DE ATENDIMENTO À MULHER – 180

DISQUE DENÚNCIA – 181

POLÍCIA MILITAR – 190