No triunfo histórico do River Plate, a noite mágica de Enzo Pérez, o volante de luvas

É possível imaginar aquele guri miúdo caminhando contrariado em direção à própria goleira, um arco rudimentar feito de taquaras em algum terreno baldio de Maipú, na província de Mendoza. A regra do campinho, com todos descalços, é revezar debaixo das traves. Ele respeita, mas também lamenta: é com os pés que encontra alguma brecha de felicidade na rotina implacável de ajudar no trabalho do pai, que é pedreiro e torcedor do River Plate.

Nada descontente estava o mesmo pibe umas três décadas depois, no gramado do Monumental de Núñez. Jogador consagrado, com passagem por grandes clubes e duas Copas do Mundo disputadas, Enzo Pérez fez até gracejo em forma de selfie com a camisa de arqueiro para ele personalizada, desde já peça de incalculável valor no imaginário millonario. O guri de Maipú talvez tenha continuado pisando no mesmo potrero durante toda a carreira, mas ontem ele mesmo tomou a iniciativa de caminhar até embaixo das traves. E, dessa vez, com luvas. Todo um luxo.

O volante de luvas tornou-se o protagonista de um triunfo histórico do River Plate, que bateu o Santa Fe por 2 a 1 mesmo com uma escalação toda esfarrapada. O surto de Covid-19 atingiu vinte atletas e fez com que o banco de reservas estivesse vazio de opções. Dois jogadores da base estrearam pelo time principal e, mesmo com o braço quebrado, o zagueiro Pinola colocou-se à disposição para ser alternativa, mas foi poupado. Mais uns trinta minutos e era capaz de Gallardo não conseguir mandar onze atletas a campo — meteoro, sarampo, divórcio, algo assim.

Mas, se o River Plate não tinha goleiro, os colombianos começaram o jogo aparentemente sem o time inteiro. Com poucos minutos, os anfitriões já começavam a escrever a mitologia e venciam por 2 a 0, e o Santa Fe foi dominado pelo arremedo de time millonario durante toda a partida. Exceto pelo gol de desconto, já no fim, praticamente nenhum disparo em direção a Enzo Pérez. Sentindo falta de participar mais ativamente do momento que era seu, ainda no primeiro tempo ele atirou-se para uma defesa e mandou a escanteio uma bola que sairia em tiro de meta. Para um especialista da posição, seria uma falha. Para o volante de luvas, o momento vestiu-se de glória. Logo, vai estar pendurado na parede de casa.

O goleiro emergencial foi protegido por um furioso e disciplinado cinturão de camisas franjeadas à frente da área, que se atracava a mordidas, se fosse o caso, na mínima menção a um engatilhar de perna dos colombianos, e mesmo assim mostrou alguma desenvoltura em eventuais escaramuças aéreas. A vitória, nas circunstâncias em que aconteceu, é emblemática. O River Plate atual é projeto e também é identidade. Enzo assim se chama por homenagem a Francescoli. É millonario de coração, herdeiro de pai pedreiro e millonario. Tomou a iniciativa de caminhar em direção à própria meta porque se recupera de uma distensão muscular: permanecer em pé e executar um que outro manotaço era tudo que podia oferecer.

No controle das possibilidades do jogo e dos fatores místicos, está um técnico que com frequência desrespeita os limites para reiventar seu próprio time. O desempenho que Marcelo Gallardo conseguiu extrair com o balaio de gatos que tinha à disposição impressiona sob todos os aspectos: é como se ele próprio se tornasse a força motriz da equipe que entra em campo, qualquer que seja. Uma espécie de maestro com tal poder de adaptação que parece ter comparecido a alguma esquina porteña, numa noite distante, munido de bandoneón e prancheta para fazer negócios da alma e então passar a tocar o tango como ninguém nunca tocou e a treinar o River como ninguém nunca treinou.