Entenda como a MP publicada por Bolsonaro interfere nos direitos de transmissão e por que pode mudar o futebol brasileiro

Alguns fatos são menos importantes pelas consequências imediatas, porém significativos para a história pelo reagrupamento de figuras e interesses. Este parece ser o caso da Medida Provisória 984/2020, editada por Jair Bolsonaro para compor com o Flamengo e interferir na venda dos direitos de transmissão do futebol brasileiro.

Factual, em primeiro lugar. Hoje, emissoras só podem transmitir partidas de futebol se tiverem a anuência de mandante e visitante. Na prática, elas precisam comprar ambos os direitos de transmissão. Este assunto foi regrado por meio da Lei Pelé, sancionada há duas décadas.

A MP 984 altera essa dinâmica. Sem que a concordância do visitante seja necessária, clubes poderão vender seus jogos enquanto mandante livremente. Faz mais diferença para o mercado do que você imagina.

A primeira questão é o prazo. MP existe para que o governo adiante nova regra, enquanto o Congresso corre para avaliar se ela será mesmo incorporada à legislação. A medida vale por 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias. Quatro meses, então. Se o conteúdo não for apreciado por deputados e senadores após 45 dias, ganha status de “urgente” e tranca a pauta. Nada mais é votado enquanto não houver deliberação.

É pertinente trancar a pauta legislativa com futebol por meio de Medida Provisória, ainda mais em meio à pandemia do coronavírus? Como Bolsonaro precisa fazer média com milhões de torcedores, vale tudo.

A segunda questão são os clubes alcançados de imediato. Para a maioria dos integrantes do Campeonato Brasileiro, os direitos estão todos vendidos pelo período entre 2019 e 2024. Mas há exceções.

O Flamengo não vendeu os direitos do Campeonato Carioca de 2020. Da maneira como a Lei Pelé estava disposta, nem venderia. A Globo comprou os direitos de todos os seus adversários, grandes e pequenos, portanto não autoriza que seus jogos passem em outro lugar.

O Athletico-PR vendeu os direitos do Brasileiro para a Globo, na televisão aberta, e para a Turner, na fechada. No pay-per-view, não há acordo vigente com nenhuma parceira.

Promovidos para a primeira divisão no ano passado, Coritiba e Red Bull Bragantino ainda não assinaram contratos para televisão aberta e pay-per-view no Brasileiro. O Coritiba vendeu a fechada para a Turner.

Nos quatro casos, as perspectivas são parecidas. Com a Lei Pelé vigente, eles estavam limitados à Globo para vender esses direitos, porque todos os adversários fecharam com a emissora. Direitos de visitantes estão “interditados”. A MP abre a possibilidade, ainda que questionável, para que dirigentes comercializem direitos soltos para outras empresas.

A terceira questão é a incerteza jurídica. Clubes beneficiados pela MP entenderão a situação da seguinte maneira: diante da legislação alterada e imediatamente válida, ainda que provisória, eles podem vender seus direitos de mandantes sem se preocupar com mais nada.

A Globo diverge. Em comunicado publicado pela emissora, o raciocínio é: de acordo com a legislação no momento em que a empresa comprou os direitos, a propriedade incluía direitos de mandantes e visitantes.

O confronto entre Bragantino x Corinthians obedeceria a qual critério?

  • O Bragantino pode vender este jogo porque é mandante?

ou

  • A Globo comprou este jogo porque o Corinthians é visitante?

Esta incerteza jurídica pode afugentar justamente as empresas que comprariam os direitos ainda não comercializados pelos quatro acima.

O que realmente importa

A MP 984/2020 é a notícia da vez, mas a história que mudará o percurso de todo o futebol brasileiro ainda está se formando nos bastidores.

Existe um certo consenso no mercado de que a regra dos “direitos de mandantes e visitantes” serviu, até hoje, como um contrapeso para o desequilíbrio existente na distribuição dos direitos de transmissão. Pois evitou que os clubes de maior torcida pegassem todo o dinheiro.

Principalmente depois que o Clube dos 13 foi implodido em 2011, junto com a negociação coletiva e centralizada, temia-se que Corinthians e Flamengo, beneficiados pela negociação individual, descolassem dos demais clubes em termos de dinheiro arrecadado por meio da televisão.

O futebol espanhol desequilibrou enquanto negociações foram individuais. Barcelona e Real Madrid vendiam seus pacotes de 38 jogos por temporada, no Campeonato Espanhol, e obviamente tinham um poder de barganha muito maior do que Alavés e Eibar. Até que houve intervenção estatal em 2015 e a centralização dos direitos na LaLiga.

Hoje surgiu uma nova percepção entre dirigentes.

Alguns presidentes querem mudanças e exercem influência sobre os demais. É o caso de Guilherme Bellintani, do Bahia, que elogiou publicamente a MP 984 nas redes sociais. Mario Celso Petraglia, do Athletico-PR, também tem este perfil e adora um atrito com a Globo.

A lógica defendida pelos “rebeldes” é a de que a derrubada da anuência do visitante poderá equilibrar a distribuição dos recursos de transmissão, desde que surja um bloco de clubes, mesmo que médios e pequenos.

Suponha o seguinte cenário, que hoje circula nos grupos de Whatsapp frequentados por cartolas de todos os clubes do primeiro escalão.

  • Athletico-PR
  • Bahia
  • Ceará
  • Coritiba
  • Fortaleza
  • Internacional
  • Santos
  • Palmeiras

Este bloco com oito clubes comercializou os direitos de transmissão para televisão fechada, anos atrás, com a Turner. Hoje a empresa americana não tem mais interesse no futebol brasileiro, depois de seu negócio fracassar e ainda ser agravado pela pandemia do coronavírus.

Nas regras da Lei Pelé antes da modificação, a Turner havia comprado um pacote de 56 partidas. Ou seja, os jogos desses oito clubes entre si.

Nas regras alteradas provisoriamente pelo governo, este mesmo bloco poderá vender 152 jogos. A soma dos “direitos de mandante” de todos.

Com um diferencial. Se nas regras convencionais eles não teriam direito a nenhuma partida contra o Flamengo, que naturalmente tem audiências superiores por causa do tamanho de sua torcida, com a mudança seus dirigentes teriam oito jogos contra o “visitante” Flamengo.

E para quem eles venderiam os direitos de transmissão? Para a própria Globo, talvez. Ou para concorrentes em televisão aberta e fechada. Ou então este bloco pode criar uma plataforma própria para streaming de partidas, subtrair o “intermediário” do negócio e cuidar de toda a operação. Isso logicamente inclui custos e riscos consideráveis.

Isto não é um exercício de lógica, mas a corrente que, com a MP 984, ganhou força entre dissidentes da Turner. Dirigentes acreditam que este possa ser o embrião de uma liga no futebol brasileiro.