As relações da pandemia com a educação

A pandemia ainda está em curso e, portanto, é difícil chegar a uma conclusão de como de fato foi essa situação para os professores. Contudo, é correto afirmar que a pandemia modificou as relações de trabalho e a vida tanto do professor quanto a de qualquer outro trabalhador. Mudou para sempre. Isso pode ser visto neste ano letivo, que por sua vez teve alguns fatores que acredito que seja válido para este artigo. A princípio pude notar uma espécie de divisão dos professores entre aqueles que tinham algum contato com as tecnologias digitais e aqueles que não tinham. Os professores que não tinham apresentaram muita dificuldade em se adaptar aos tempos de pandemia, já o outro grupo, conseguiu lidar da melhor forma possível – que não é muito boa.

Esse ano no estado do Paraná, tivemos três modalidades de ensino e esses três períodos tiveram suas dificuldades. No primeiro período, totalmente remoto, a maior dificuldade foi em conseguir o maior número de discentes para comparecer às aulas, para isso a escola procurou doações de celulares, notebooks e outras medidas. No segundo período foi em organizar e preparar a escola para receber os alunos de maneira híbrida, nesse caso a maior dificuldade foi técnica, internet na escola, as medidas de proteção, falta de equipamento de proteção individual, organização do Estado que atendeu a pressões externas colocando em risco a saúde dos profissionais docentes e também das crianças filhas do nosso Paraná.

Também tivemos um período de adaptação no qual o professor teve de aprender – sem nenhum tipo de treinamento ou formação – em como iria atender os alunos remotos e presenciais ao mesmo tempo. No terceiro período foram as aulas 100% presenciais, aqui a maior dificuldade foi em lidar com os problemas que os discentes trouxeram por causa da pandemia – crise de ansiedade, fobia social, agressividade, entre outros. – além da readaptação dos alunos, tentando fazer com que se acostumem com a nova rotina, a conscientização sobre o uso de máscara e a importância da vacina.

Também tive relato de colegas que esperavam a volta às aulas presenciais para pararem de utilizar as tecnologias, outros professores com medo de usar os novos recursos disponibilizados pelo Estado e outras coisas mais.

O correto não é dizer se trabalhamos mais ou menos, uma coisa que a pandemia fez – para o bem ou para o mal – foi evidenciar as condições de trabalho que o professor já vivenciava antes mesmo da pandemia. No artigo intitulado “O Impacto Biopsicossocial da Educação Híbrida em Professores da Rede Pública do Ensino” que escrevi em conjunto com a psicóloga Daniela Dias do Nascimento tratamos disso de forma mais aprofundada, mas, em resumo, o professor sempre levou seu trabalho para casa e isso sempre foi um problema, um problema o qual ninguém comentava ou foi tão naturalizado que ninguém dava importância. A questão é que com chegada da pandemia e o professor sendo obrigado a dar suas aulas na modalidade remota, a relação de professor-aluno, professor-professor, professor-família, foram totalmente rompidas e reconstruídas de forma danosa, prejudicial para a saúde do profissional docente.

Explicando de forma didática, tente imaginar a seguinte situação: Antes, assim como a maioria dos profissionais o professor se dividia em “duas pessoas”, havia o professor Matheus – aquele que segue à risca a ética exigida pelo trabalho – e o Matheus homem – aquele que bebe uma cerveja no fim de semana, que tem uma namorada, enfim, que tem sua vida privada – e as barreiras que separavam o profissional do exercício de sua função, no caso do professor é representada pelo fechar dos portões da escola. Agora, devido a pandemia o profissional docente está atuando na sua função vinte e quatro horas por dia, tendo de atender, pais, alunos, coordenadores, na hora do almoço, no jantar, na cama, às vezes sendo acordado de madrugada para resolver assuntos de trabalho, ou seja, além de todos os problemas que o professor já lidava antes, agora ele também precisa lidar com a falta de privacidade oriunda do acesso intermitente das famílias e instituição de ensino e isso além de intensificar o estresse gerado pelo trabalho, também potencializa qualquer outra doença que o professor já tinha, também mina sua relação familiar e vários outros problemas.

No meu caso, que sou um professor ainda jovem, não tive tantos problemas para ministrar os conteúdos da minha disciplina, mas minha maior dificuldade foi vencer os problemas sociais que explodiram na pandemia e também com o retorno às aulas tentar readaptar os alunos com uma antiga rotina, além de tentar recuperar o conteúdo perdido de praticamente dois anos. Porém, identifiquei vários colegas tendo dificuldades na questão tecnológica. Na dissertação de Mestrado que estou escrevendo acabo trabalhando com esta questão e tento entender essa dificuldade, o que consigo afirmar até o momento é que isso acontece devido a conflito geracional dos professores com as tecnologias digitais. É outro problema que já acontecia, mas foi evidenciado pela pandemia.

E sobre a questão dos conteúdos passados por mim durante esses dois anos letivos é que na realidade eu tive que adaptar meus conteúdos três vezes para enquadrar as três modalidades de ensino que o estado do Paraná tentou aplicar neste ano e devido a isso, tive de cortar alguns conteúdos específicos da minha área e tentar focar na readaptação e nivelamento – habilidade de leitura, compromisso, ética, conteúdos básicos de geografia – dos meus discentes.Uma ocasião que ocorreu na metade do ano, quando o modelo de ensino híbrido foi implantado a qual não me esqueço, foi quando chegaram os primeiros alunos presenciais – os priorizados eram aqueles que não tinham acesso às trilhas de aprendizagem e nem aulas remotas – e eu tive que voltar o mesmo conteúdo três vezes, para cada grupo de aluno que aparecia em cada aula. Foi um atraso que não consegui recuperar, mesmo tentando muito.

Sou geógrafo e pude notar os mais diversos problemas sociais durante a pandemia. Veja bem, os dois principais problemas sociais que foram os mais chocantes foi a merenda escolar e o não acesso a internet. A escola, principalmente no Paraná, age como uma instituição de caridade ou de assistência social, mas tem poderes de instituição de ensino. O que isso significa? Muitos alunos, tinham sua única refeição no dia como sendo a merenda escolar e viam na escola, como seu único lugar de refúgio de famílias não estruturadas que expõe a criança a algum tipo de violência – casos de abusos, físicos, psicológicos, verbais, sexuais, etc. – Quando a escola fechou, uma das primeiras medidas que o governo teve de tomar foi a doação de “cesta básicas” para as famílias, evidenciando a fome no estado. Quando houve a volta às aulas e estas cestas foram canceladas muitos pais foram atrás da escola desesperados e inclusive adiaram o retorno de seus filhos para a instituição de ensino, temendo o fim dessas cestas e de seus filhos voltarem a passar fome em decorrência da falta do dinheiro “extra” que sobrava por não precisarem comprar os alimentos básicos que nelas vinham.

Outro problema foi o não acesso aos meios digitais, o estado do Paraná proporcionou para os alunos as aulas na modalidade remota, porém muitos alunos não tinham como realizar essas aulas, ou seja, os alunos que tinham o mínimo de condições financeiras tiveram o mínimo de conteúdo e o ano não foi totalmente perdido, mas os alunos que só tiveram acesso às atividades impressas, esses, com toda certeza, estão com uma defasagem de conteúdo acumulada em mais de um ano. Isso quer dizer, que o abismo social na apropriação de conhecimento técnico-científico entre ricos e pobres é ainda maior. Foi uma das maiores contradições que vi nesse período, um estado que colocou todas suas fichas no ensino remoto e híbrido, mas não proporcionou aos seus cidadãos os meios para aproveitar esse ensino.

Mas para mim foi simples me acostumar ao ensino a distância (EAD) porque ainda sou um professor novo e já inserido no meio digital, porém vale a ressalva que essa dificuldade existiu e ainda existe. No meu caso tive contato com as tecnologias digitais muito cedo, não tive tanta dificuldade quanto meus colegas mais antigos. Até porque sai da universidade com 21 anos e como faço mestrado meu vínculo com a academia e a pesquisa ainda são muito fortes. O perfil do professor do Brasil é um professor de mais de 40 anos que não tinha tanto contato com as tecnologias digitais, eu me lembro de em 2019 me deparar com professores que mal sabiam mexer em ferramentas como Google Maps, Google Drive e até mesmo o WhatsApp. O descaso do governo com a formação do professor foi escancarado durante essa pandemia e isso é algo que não podemos esquecer.

Voltando para a questão dos estudantes, segundo o feedback que recebi dos meus alunos, os conteúdos que eles se apropriaram foram aqueles voltados à sociedade, a pandemia e também ao cotidiano. Agora, os de geografia mais comuns – solo, vegetação, etc. – eles tendem a não lembrar. Isso porque, durante o ano de 2020, pelos relatos que recebi deles, eles “não aprenderam nada” e quando voltaram também não sabiam mais como se portar em sala de aula, ou ainda estavam aprendendo como se portar. Claro, sempre temos que levar em conta o contexto, meus alunos de sétimo ano, tem comportamento de sexto, conteúdo de quinto e mente de uma criança traumatizada pelo constante medo da morte, por isso o assunto que eles mais se interessavam eram aqueles que adaptei para o conteúdo da pandemia e consequentemente também os conteúdos voltados à política e o que ela tenta fazer para resolver a pandemia.

O que vai acontecer é uma adaptação, os alunos mais novos, aqueles que estão saindo do quinto ano e indo para o sexto, levando em conta que os professores irão realizar seu trabalho de maneira eficiente, sem mudanças ou sugestões malucas do governo do estado, até o nono ano estarão semelhantes aos alunos de nono ano. Na pré-pandemia talvez alguns ainda apresentam uma dificuldade na leitura e escrita – o que é necessariamente o mais grave – porém, na questão de rotina ou comportamento será semelhante. Já os alunos do ensino médio, infelizmente, apenas aqueles que adquirem maturidade ou uma capacidade autodidata – normalmente adquirida na universidade – poderão recuperar.

Minha maior preocupação no momento, é com os alunos que ainda estão no fundamental I – primeiro a quinto ano – se a pandemia continuar nesse ritmo crescente a base da educação estará comprometida, por exemplo, uma das formas de se alfabetizar um aluno que está na transição do nível Pré-silábico, para o Silábico, é mostrando as sílabas para a criança, utilizando o som da fala com os movimentos e contrações feitas pelos lábios para realizar este mesmo som. Existem outras coisas mais técnicas e como mostrar os movimentos feitos pelos lábios se eles estão tapados pela máscara? Podemos resolver isso, apenas abaixando a máscara para essa ocasião? Mas e o risco de contaminação? Ou o exemplo que o docente estará dando para a criança em abaixar sua máscara? E sem a devida alfabetização, como professor de geografia fica, quase impossível reter a atuação de aluno nos meus conteúdos ou serei limitado em algumas metodologias que não envolvam a leitura, então interpretar um texto ou uma matéria de jornal fica fora de questão, então a formação crítica docente também ficará comprometida. É um efeito dominó do mais nefasto e daninho que há.

E sobre o futuro deles, na minha opinião,é que os estudantes que tiveram essa defasagem de conteúdo nunca irão se recuperar.

BIOGRAFIA – Matheus de Moura dos Reis tem 25 anos e é formado desde 2018 em Geografia na Universidade Estadual de Maringá (UEM). É especialista em Educação Tecnológica para jovens e adultos, fazendo pós-graduação em Alfabetização e Letramento e concluindo mestrado em Geografia. Matheus é professor de geografia no Colégio Estadual José Luiz Gori e no Colégio Estadual Cívico Militar São Vicente Pallotti no ensino fundamental, médio e ensino para jovens e adultos (EJA).