Dona Celeste, Pelé e o “amuleto” de País de Gales

Crônica escrita por João Flávio Borba*

Dona Celeste, nome sugestivo à uma matriarca ligada às glórias. Talvez à um rei. Um rei do futebol, quem sabe. Esse simbolismo foi ainda mais reforçado por ela ter nascido em 1922, durante a década em que a Seleção Celeste do Uruguai encantou ao mundo inteiro e que ao final daquele ciclo de uns 10 anos, acrescentou a alcunha alusiva ao bicampeonato olímpico: “Celeste Olímpica”. A Celeste Olímpica do time do povo charrua ajudou a mundializar o futebol, pois aquele momento histórico fez com que o país sul americano se desafiasse a sediar o primeiro campeonato mundial, fazendo com que esse evento global se inaugurasse fora da Europa, fato muito relevante à época.

Aos 17 anos, quase 18, Dona Celeste se tornou mãe de Edson Arantes do Nascimento, no interior de Minas Gerais, precisamente no município de Três Corações. Edson, assim como o futebol na América do Sul e no Brasil cresciam e avançavam, apesar da humanidade estar vivenciando naquela década sua maior tragédia jamais vista devido à Segunda Guerra. No ressurgir das cinzas da guerra, o Brasil como nação se colocou a sediar a copa de 1950, prestando-se à continuidade do importante evento mundial agregador de nações.

A Celeste Olímpica do Uruguai, reafirmando toda sua tradição acumulada na primeira metade do século, conquistou o bicampeonato mundial, num quadrangular final que teve o último jogo (uma final de fato) contra a sensacional seleção brasileira. O eterno Maracanaço teve muitas repercussões transcendentais ao futebol. Sobretudo reforçou um sentimento “viralatista” no povo brasileiro. Tudo que era de fora era melhor.

Edson tinha inspiração para já jogar futebol com quase 10 anos de idade. Essa inspiração era seu próprio pai, seu Dondinho, que fora jogador profissional. Conta a história que Seo Dondinho chorou muito com a perda da Copa de 50 pelo Brasil e que o pequeno Edson lhe prometera que um dia traria a Copa do Mundo ao seu país.

O ano é 1958, Edson já carrega o apelido Pelé. Já atuava profissionalmente há 2 anos. É sua primeira Copa. Com a mesma idade de sua mãe Celeste quando lhe trouxe ao mundo: 17 anos. Se torna o jogador mais jovem a marcar um gol neste torneio com
17 anos e 227 dias, um recorde até hoje não superado.

Aquele era o dia 19 de junho de 1958, e o adversário do gol debutante de Pelé aos 66 minutos de jogo foi a seleção de País de Gales, país pertencente ao Reino Unido mas que joga de forma independente as competições oficiais de futebol. A campanha dos galeses era mediana. Quatro jogos, três empates e uma vitória no jogo desempate contra a Hungria, que apesar de não ser mais a equipe lendária de 1954, impunha respeito. Por fim, os galeses se encontraram com o Brasil e com Pelé nas quartas de final da Copa. 1×0 para os brasileiros e uma despedida até satisfatória para uma seleção estreante.

Numa certa noite antes dessa copa, Dona Celeste teve um sonho. Um sonho de premonição e de revelação. O sonho tratava do futuro da realeza que seria vivida por Pelé. Num país que quando foi colônia e império, os reis escravizavam pessoas de origem africana, Pelé seria um rei negro, reconhecido no mundo todo. Elevaria a imagem e a identidade da nação brasileira frente ao mundo. E contribuiria com que o futebol alcançasse uma popularidade universal de congregação dos povos.

No sonho, à Dona Celeste ainda lhe foi revelado, que a vida dela e de Pelé seriam longevas. E que ela se tornaria centenária. E que um amuleto ainda não definido seria o marco temporal da relação do primeiro ato da eternidade de Pelé até a despedida de seu filho Edson desse plano.
Esse amuleto seria a seleção do país a que Pelé marcaria seu primeiro gol em copas. Essa seleção se despediria de um mundial e só voltaria a representar seu povo numa copa quando esse ciclo se fechasse, daí marcaria um gol novamente em mundiais. Tudo isso, apenas após os 100 anos de Dona Celeste.

Apesar do sonho não revelar qual amuleto, as circunstâncias históricas apontaram que seria a seleção de futebol de País de Gales.

A vida seguiu, Dona Celeste guardou consigo, em seu coração, mas o tempo foi deixando às margens de sua memória as previsões surgidas no passado. Ainda que fosse se concretizando passo a passo.

Se Dona Celeste fosse calcular, ela poderia concluir que seria uma centenária em uma copa somente em 2026 com possíveis 103 anos, quase 104. Pois em maio, junho ou julho de 2022, tradicionais meses das disputas em anos de copas, ela ainda teria 99 anos.

Mas acontece que a copa de 2022 começou em novembro, no mês do seu aniversário. Aliás teve o jogo inaugural no dia do seu aniversário. Dia 20 de novembro, dia da consciência negra no Brasil, dia do aniversário de 100 anos de Dona Celeste, mãe do Edson, o Rei Pelé. Na Copa, Catar e Equador fizeram a inauguração do evento com a vitória de 2 a 0 para os sul-americanos.

No dia seguinte, Estados Unidos e País de Gales empataram em 1×1. Cumpriu-se assim a profecia da revelação do sonho de Celeste de cerca de 64 anos anteriores. O amuleto de País de Gales havia voltado para uma copa depois de um longo intervalo e marcado um gol exatamente um dia após o centenário dela. Fechava – se um ciclo.

E um mês e 8 dias após, o mundo se despediria de Edson que padecia enfermo numa cama de hospital. Edson, o Rei Pelé, viveu 82 anos, 2 meses e 6 dias.

Ainda que a imaginação do autor deste crônica tenha criado cerca de metade dela é assertivo de que a ausência de País de Gales por 64 anos numa copa não é obra de uma premonição em sonho. Outros fatores conduziram a isso. E é claro, Dona Celeste não carregou a angústia de prever o futuro seja para a alegria ou ou para a tristeza.

Essa é apenas uma forma alegórica para homenagear seu centenário ainda que ela esteja nesse tempo seguramente triste pela perda de um filho, o Edson. Seu filho Edson.

Um homem que se eleva a uma outra fase da existência à partir da mortalidade de qualquer humano. Mas que já em vida foi o rei do futebol, o Eterno Rei Pelé. Um dos personagens mais importantes, emblemáticos e impactantes da história contemporânea em todo mundo.

*João Flávio Borba.
Escreve em horas extras.
Acredita na magia emanada pelo futebol e pelas copas entre as pessoas.
Texto escrito em 30/12/2022, um dia após a despedida deste mundo de Édson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé.