A Copa nossa de cada dia nos dai hoje

Artigo escrito por João Flávio Borba*

Bem começou mais uma Copa para que Adrian tentasse exercitar com os pequenos filhos, um deles na sua primeira competição, o “clima de Copa”. Aquele ano não tinha sido fácil, pois nosso personagem havia vivido vários momentos marcantes, talvez até traumáticos. Foram descobertas impactantes na sua vida.           

Enfrentou um reencontro com um antepassado que mesmo sabendo de sua existência, não existia proximidade até então. Perdeu um amigo que havia vindo de muito longe, de uma terra muito distante, mas que ajudou-lhe a moldar a forma de encarar a vida. E mais recentemente, amargamente, não pode dar um suporte a um estranho que padecia numa situação de risco de morte. Marcou-lhe muito. Enxergou o moribundo como um irmão.

Em casa, tratava com carinho os filhinhos e a esposa dum jeito que o dinheiro não pagaria. Dinheiro que aliás lhe era escasso, já que trabalhava em vários serviços informais, pois àquela altura dos últimos anos, se tornara um desalentado na busca de uma vaga de contratação.

Estes, no entanto, eram os eventos que circundavam sua vida. Mas Adrian era daqueles sujeitos para além e tinha clareza dos dilemas que seu país vivia e não ficava às margens dele.

Num dia qualquer, Dona Zelândia, uma senhorinha dessas que organizam esses trabalhos voluntários e solidários de igreja, lhe abordou sobre ir buscar uma cesta de alimentação que o movimento Josué de Castro ia distribuir lá na comunidade Santa Irmã Dulce do Pobres.

Não pensou duas vezes, ele foi, ganhou a cesta que tinha de arroz e feijão à batata doce e mandioca. Uma riqueza. Combinou por cima com a esposa e levou na casa do Seu Austral, um senhor de uns quarenta e poucos anos. Tinha uma mulher com problemas de saúde e quatro filhas mocinhas. Duas já adolescentes. Vivia da cata de recicláveis e vendia camisetas de segunda linha de times e seleções nesses varais à beiras de estradas e avenidas. Adrian sabia que Austral e família precisavam mais daquela cesta do que eles. E nem na lista de recebimento eles estavam incluídos.

Os dias seguiram e o nosso personagem acompanhou atento a chegada das eleições. Viu alguma confusão de rua por aí. Dizia consigo que briga que não vale a pena ele não entrava. Um dia passou uma passeata simpática e colorida do candidato da sua preferência. Mergulhou nela. Tinha bastante gente. Saiu até naqueles vídeos que circulam em redes sociais. Teve três vizinhos da sua quadra que deixaram de conversar com ele (dois já nem conversava mesmo, só pararam de olhar-lhe aos olhos). Mas teve outros que se animaram. Se sintonizavam. Criaram até código para se saudarem. Pessoalmente se encontravam e riam.

E a vida seguiu. E a eleição passou como muitas outras. Adrian sabia que o país não estava unido. Mas era ele que não ia aumentar o racha, dizia. Não guardou rancores, não deixou de olhar pra ninguém nos olhos e só esperava que a Copa chegasse e que o Natal viesse e que a mistura desses climas impactasse geral.

Certo dia no portão de casa apareceu ali uma das filhas do seu Austral. Uma sacolinha com duas camisetinhas da seleção brasileira. Disse ela que seu pai havia pedido para trazer de presente para ele dar aos filhos. Os tamanhos quase deram. Ficaram um pouquinho frouxinhos, mas isso era o que menos importava, pois as crianças estavam a crescer. O nosso personagem ainda aproveitou e comprou um álbum desses baratinhos e um pouquinho de figurinhas só para criar expectativas nas crianças. E criou mesmo. Aprenderam nome de países, e desenhavam as suas bandeiras. A Copa começou e queriam ver todos os jogos. Pareciam adultos (ou às vezes esse tipo de paixão não se mede por geração). Gostaram de Senegal. Torciam muito pelo Brasil e gritavam nos gols. Queriam pintar os rostinhos. Nem ligaram quando perdeu para Camarões. E a Copa seguia. Adotaram Portugal, Argentina e França pra torcer também. Brincavam de bola e queriam repetir os placares dos duelos da TV. A copa do coração e da mente das crianças é a mais espetacular que existe.

O time que o Adrian torcia saiu da Copa. Sem lamúrias. O que viesse a vencer pouco importava, pensava, pois em algum grau seus atletas, seus seguidores em toda parte ou seus orgulhosos cidadãos daquele determinado país tinham seu merecimento. Olhou pra traz no ano que já quase ia se esvaindo. Lembrou dos dramas, das angústias, das conquistas, da forma como tratou e conduziu tudo. Se sentia bem. Esperançoso como sempre foi, olhava ao futuro, mirando pra frente. Pois é daqueles que sabe que não existem derrotas definitivas nem tampouco vitórias que perdurem para sempre.

*João Flávio Borba. De Mandaguari. Vive por Marialva. Pai da Laura e do Hugo, pequenos entusiastas com a Copa 2022.