“Uma geada que mudou nossas vidas”

As galinhas principiavam o alarido. O dia estava escuro. Era 18 de julho de 1975. Embaixo de um pesado acolchoado de painas ouvi minha mãe dizer ao meu pai que a água da caixa na varanda congelara. O recipiente cheio evitava várias idas à mina que ficava numa grota a uns 500 metros de casa. Ela sempre levantava antes para preparar o café. Em seguida meu pai saía da cama para ordenhar as vacas. Eu, curioso, corri para ver a cena. A caixa de concreto estava espelhada. A água virara vidro, imaginei. 

Era um dia especial para mim. Meu aniversário. Mas naquele tempo a gente nem ligava para essas coisas. Passava batido. Ainda mais naquele dia que só se falava de frio. O sol raiou na colina no alto do pasto. Logo começou a surgir um cheiro de folhas verdes queimadas. Meu pai levantou. Nem foi ao curral. Com minha mãe, seguiu rumo ao cafezal, que se avizinhava de casa. 

Eu levantei, peguei uma caneca de alumínio e corri para o curral. Era rotina. Sempre a levava com uma colher de pinga ao fundo. A bebida era misturada ao leite quente e espumoso que saía das tetas das vacas. A gente degustava a inusitada mistura. Mas naquele dia, não tinha leite. Encontrei meu pai e minha mãe cabisbaixos, tácitos. Acabou tudo, repetia ele. 

Referia-se à geada daquela madrugada de 18 de julho de 1975. Com a chegada dos primeiros raios de sol, a vegetação começava a ficar negra. Segurei na perna dele, contraí a mão no tecido da calça e desandei a chorar. Não entendia bem o que se passava, mas não resisti à tristeza dele e da minha mãe. 

Dali a pouco se formou um burburinho na estrada batida que passava a alguns metros do nosso terreiro. Os vizinhos. Eles falavam ao mesmo tempo querendo entender o que acontecera. O Bonifácio, um senhor esguio, de bigodes amarelos, se mostrava exaltado. Não se conformava. Meeiro, igual meu pai, ele perdera sua colheita de café. O trabalho e o investimento daquele ano haviam queimado.

A gente apanhava as folhas de café e as esfregava com as mãos. Um pó preto caía no chão. Torraram. Troncos e galhos também. Secavam como se um fogo os tivesse atingido. Resultado do frio cortante da madrugada. A tal geada negra. Hoje, sabemos. Recebe esse nome porque queima a parte interna da planta, deixando-a escura. 

Aquela camada de gelo que cobriu as pastagens com o correr das horas e o sol foi se transformando. O capim escuro mudava a paisagem. No outro dia, tudo estava negro esturricando. Uma mangueira de plástico, que levava água a uma horta que tínhamos no terreiro, trincou. A torneira fixada na caixa de concreto estava aberta, e a mangueira com o bico fechado.  A água congelou dentro. 

Naquele tempo, o café era o carro-chefe da roça. Com o arroz, o feijão e o milho. Mais tarde surgiu a soja, que a gente chamava de “feijão japonês”. As laranjas do pomar que havia na sede da fazenda onde morávamos também sucumbiram ao frio. Murcharam e com o passar dos dias caíram. Tudo parecia perdido. 

A saída era recomeçar. Aquele café desgalhado, que formava árvores e era colhido com escada, levava tempo para refazer. A intensidade daquela geada não permitiu rebrota. Tivemos de replantar tudo. Mas a roça perdeu a robustez. Os cafezais já vinham baqueados com a inexistência de uma política de preços dos governos. A catástrofe de 1975 foi o empurrão ao abismo.

Muita gente seguia para a cidade. São Paulo era o destino preferido. Virar operário na linha de montagem de alguma indústria. Meu irmão, desanimado, foi tentar a vida lá. Meus pais permaneceram na lida do campo. Se achavam velhos para encarar a cidade. Não sabiam fazer outra coisa que não ali no eito dos cafezais. 

Nós, crianças, também sofremos. Um campo de futebol onde nos reuníamos para jogar bola nos fins de semana virou terra. A grama queimada com o frio não rebrotou. Azar nosso. Cada tombo era uma ralada nas pernas. Até hoje carrego as marcas dos verdes, secos e tristes campos daqueles rincões da infância.

*Donizete Oliveira é jornalista e historiador