A felicidade num grão de café colado ao outro

A vida na roça era feita de pequenas coisas. Ou pequenas alegrias, como se dizem por aí. As crianças brincavam com algumas coisas que ficaram na lembrança. Por exemplo, os chamados Filipe ou Felipe de grãos de café. Eles cresciam um grudado ao outro. Às vezes, dois, três e até quatro emendados. Achar um Filipe com quatro grãos era um feito sem igual. Eu achei até com cinco, mas era raro.
A gente vasculhava os pés de café atrás de um Filipe. O gosto da molecada era sair feito detetive. Olhar atento em cada ramo de café maduro. Ali poderia estar um deles. Uma vez meu pai achou um com seis grãos colados um ao outro. Ouve disputa entre mim e os sobrinhos menores para ver quem ficaria com a joia.
De tanta contenda, o pai o escondeu. Não deu para ninguém. Não sei que fim levaram aqueles seis grãos colados. Um bom jeito de achá-los era no meio do café a secar, no terreiro de concreto. Ao mexê-lo com o rastelo para tomar sol, sempre surgia um Filipe.
Eu ia atrás dos meus irmãos, que fazia o serviço. Olhos grudados nos grãos de café. De repente, a alegria estampada no rosto. Enxergara um Filipe.
Existia uma crendice. Se alguém achasse um Filipe tinha de passá-lo a outra pessoa. Dizia-se “pague meu Filipe”, e ela, que o recebeu, tinha de dar um presente a quem o achou. A gente brincava, mas ninguém levava a sério. Nunca ganhei presente, e olhe que achei muitos grãos de café colados. Mas o que valia mesmo era o prazer de tê-los guardados e mostrar a coleção de Filipe aos colegas.
Também se dizia que achar um Filipe era sinal de sorte na colheita de café. Muitos acreditavam. Um vizinho nosso os colocava em cima de uma viga do telhado da casa. Ele dizia que era preciso guardá-los para vir uma colheita farta. Eu não tirava os olhos deles, querendo levá-los. Mas ficavam lá até apodrecer. Vez ou outra, a geada frustrava a simpatia dele.
Nos terreiros de secagem de hoje não existe mais Filipe. Ou não é tão fácil achá-lo por ali. Na colheita moderna de café os grãos são lavados em tanques especializados, separando-os. Nos pés ainda é possível achá-los. Não sei se os cafés atuais produzem tantos deles. Aqueles de antigamente, que cresciam e desgalhavam eram fartos em produzir grãos emendados.
Aquelas estradas de terra roxa, compridas. Ao lado, as fileiras de pés de café. A mãe ia levar almoço ou café da tarde, eu atrás. O tico-tico quebrava o silêncio. Eu de olhos vidrados nos ramos de café. Tentativa de avistar um Filipe. Até chegar ao local do eito, em que meu pai e meus irmãos estavam sempre tinha dois ou três na mão. Que felicidade! Ganhara o dia.
Como diz Drummond: “Há duas épocas na vida, infância e velhice, em que a felicidade está numa caixa de bombons”. Naquela época, caixa de bombons era raro. Havia o Filipe de café, que preenchia nossa existência. Não precisávamos de mais nada para ser feliz. A felicidade estava num grão de café colado ao outro.