Por que existe o Curvão?????

Bem na véspera do jogo contra o Real Madri da Vila Esplanada, cansada de tentar levar o filho ao terapeuta, Dona Marta bateu o martelo. É amanhã, sim, senhor, seo João Juvêncio. Está marcado. Você não me faça fiasco. Ninguém mais aguenta te ver assim, triste, resmungão, fechado, ensimesmado. Vamos resolver de uma vez por todas esta parada.

O menino, consumiu-se a noite toda em febre. Se virou na cama.  Horas e minutos  intensos. Bolava planos sensacionais  para se livrar da tal consulta.  Levantaria antes de todos. Fugiria no mundo. Se esconderia no forro. Desceria pelo sarilho até o fundo do poço. Cada projeto mais doido que o outro. E a febre só aumentando.

E o mais importante.  Não poderia perder o jogo. Não era um jogo. Era contra o Real Madri da Vila Esplanada, o melhor time da cidade. A mãe não podia remarcar para outro dia?

No seu desespero indagava quem é que pode entender o que eu sinto, o que eu sofro? Repassava o filme de seus últimos meses. Adorava  futebol. Dormia com a bola na cama, aos seus pés para aprender a jogar bem. Seu sonho maior. Imaginava, quando sozinho, as mais belas jogadas e gols, mas, dentro do campo, era sempre um jogador apenas razoável. Nada mais.  Só que em alguns dias, em alguns jogos, ele se surpreendia consigo mesmo. Era sensacional demais. Todos, e até ele mesmo,  ficavam boquiabertos, Surpresos com suas jogadas.

Pelé, Messi, Maradona. Se achava.

Este era o seu drama íntimo. O que lhe acontecia? Para aumentar ainda  mais sua angústia, em muitos jogos, aparecia no campo, um senhor de calças marrons, bengala de prata, casaco longo e chapéu preto. Exigia que o jogo fosse paralisado e que todos formassem um semicírculo.

Aquele homem fazia sermões esquisitos.  Roubava  minutos  da partida para falar sobre matas, árvores, entidades secretas, fantasmas, figurações, perigos mortais. Sua língua enrolada deixava os assuntos muito confusos.

Muitos meninos  levavam na brincadeira. Até apelidaram o tal senhor de Love Craft. Mas, João sentia,  uma agulha queimando, aquelas palavras daquele senhor.   Seu ´cérebro derretia? Levava horas para se recuperar.

Foram  meses. João Juvêncio sentia seus cabelos arrepiarem. Não podia admitir. Ele mesmo fazia feitiçaria?  Era por isso que Love Craft vinha visita-los no campo? Como demorei para perceber?

Estas dúvidas nasceram quando  João percebeu que jogava bem, se transformava em um craque somente nos dias em que descendo a Avenida, em direção ao campo, sentia uma força grande, magnética que o atraía, ao se aproximar do Curvão.  Era obrigado a parar, ficar a contemplar  a grande curva,  olhando o céu por cima da avenida curvilínea por minutos. Perdia até o contato com a realidade nestes momentos. Era impossível resistir a tal força misteriosa.

Depois, aliviado,  seguia para o campo tomado por uma força inigualável. Destruía o placar. Gols inimagináveis, passes e dribles nasciam dos seus pés  naturalmente. Era esse o seu drama. Como contar isso a um psicólogo? Poderia  ser preso? Internado? No Morrinho?

Para comprovar e se livrar do pavor que lhe tomava o cérebro, fez algumas experiências. Não passava pelo Curvão em alguns jogos. Era batata. Não jogava nada nestes dias. Era até substituído. Uma vez foi até vaiado. Nem nos aspirantes deve jogar, alguém gritou.

Se sentia mal com isso, nos dias de jogos importantes recorria ao Curvão. Era como um dopping. Culpa ou vergonha, seu dilema a cada partida.

No dia seguinte, atendeu aos chamados da mãe. Abriu a porta do quarto. Se jogou ao chão. Ajoelhado explicou, explicou, explicou.  Ela, vencida,  coração cortado.   Resolveu aguardar mais uns dias.  Ele grato leve solto, se fechou.  Só saiu do quarto quase na hora do jogo contra o poderoso Real Madri da Vila Esplanada.

Se preparou silenciosamente, separou o uniforme com cuidado. Prometeu a si mesmo  não passar  pelo Curvão, mesmo que   o jogo fosse contra o mais poderoso time da cidade. Fez força. Resistiu. Seguiu direto para o campo. Durante o primeiro tempo inteiro não acertou um passe.

Entrou em crise.  Mas, no intervalo, antes que fosse substituído,  fugiu, ninguém viu . Correu para o Curvão. Ficou lá uns cinco minutos só absorvendo energias. De quê? Ele não sabia.

Retornou ao campo. Não deixou o treinador o ver para não ser trocado. Seria o fim de sua carreira.  Bastaram dez minutos, três gols, virou o placar. Mas sua cabeça doía. Nem vibrava com seus companheiros de time. Era muito cruel consigo mesmo.  Experimentar aquela sensação estranha o moía por dentro. Uma culpa cinza, gelada.

Precisava marcar o quarto gol logo, João Juvêncio sentia. Marcaria, pediria para ser substituído imediatamente.  Correria  pra casa se livrar daquela dor. Se jogaria para baixo dos lençóis, Adormeceria para se curar. Esquecer.

Não demorou, a bola veio alta na direção dele, era só aparar no peito e fazer um gol de bicicleta.  A consagração. Os aplausos.  Neste momento, o juiz apitou paralisando a partida. João Juvêncio, ao ouvir,  achou que havia sido descoberto. Não.  Era uma invasão de campo. Sim, era o Senhor Love Craft. E seus costumeiros sermões. Roubou-lhe o gol de bicicleta.

O  time adversário comemorou a paralisação  e até correu, rapidinho,  para formar o semicírculo em torno do pregador. João tentando se controlar. Procurava soluções para não ser dominado pelas palavras de Love Craft, não deixar seu cérebro derreter, não ser atingido  e destruído. Era uma luta feroz dentro do campo.

João Juvêncio contra Love Craft.

E a voz do senhor Love Craft, como um sino, foi batendo,  penetrando  na cabeça de João,  bigorna muito forte, araponga. A energia da cabeça do craque  foi  se apagando, se transformando em um fio.   Sem forças,  teve de sentar-se. Fraqueza ou sonho?  João sentiu suas forças sumindo,  raízes de enormes árvores a  aprisionarem seus braços e pernas ao solo, ao chão, à terra. Mergulhou numa viagem sem fim. Via com os olhos fechados.

Love Craft  chegando à cidade. Tudo mato ainda. Floresta fechada. Impossível ver o horizonte. Vinha sozinho. Para continuar  abrindo a picada que daria sequência  à estrada. Tinha de agilizar o trabalho a partir da região do Curvão.  Missão dada pela Companhia colonizadora. O engenheiro anterior tinha chegado até ali.  E desaparecera.  Sumira,  enviando, posteriormente,  uma carta. Nela explicava  que nunca mais queria retornar à região do curvão. Não queria nunca mais ver o que tinha visto.

Pior, dizia na carta que seria impossível continuar a estrada em linha reta como mandava o projeto inicial, desenhado por outro Inglês. De Londres, a companhia não aceitava, tinha de ser em linha reta, senão ia ficar muito caro. Ia ter de mudar tudo. Que se fizesse de acordo com o projeto inicial. Avenida reta. Era a ordem. Custe o que custar.

Com esta missão vieram  outros dois ou três ingleses.  Nenhum deu conta. Fugiram?   Pediram demissão?  O rumor  entre os homens da Companhia era que um deles até enlouquecera. Era demais para a cabeça humana presenciar o que havia ali.

Love Craft não queria vir. Soubera de todas as histórias sobre o Curvão.  Se arrepiava. Se negava. A Cia insistiu. Ele negou. Os prejuízos estavam sendo enormes.

Um diretor da companhia, também pressionado, ofereceu a Love Craft  o triplo do salário.  A vontade de voltar para a Inglaterra, rever sua jovem esposa pesou. Se tudo desse certo chegaria antes do nascimento do primeiro filho. Deixara ela grávida, para tentar ganhar um dinheiro na América e retornar.

A mata era fechada. Escura a qualquer hora do dia. Love Craft  conhecedor do  conteúdo da carta do seu antecessor na tarefa, desde Apucarana, vinha amedrontado diante do problema que afugentara mais de um  engenheiro, logo eles, tão experimentados,  que  já tinham aberto muitas estradas, no meio de florestas tão ou mais fechadas que estas.

Faltando mil metros para chegar ao Curvão, Love Craft sentiu que a mata se escureceu. Os pássaros piaram em forma de ameaça. O vento gelado  torceu as árvores. Teve de agarrar a um tronco de uma jovem peroba.  Onças miaram longe, soturnamente.

Tinha prometido a si mesmo não falhar. Conhecia tudo o que ia lhe acontecer. A qualquer momento, aquilo que tinha feito os outros fugirem iria aparecer  para ele também. Cada passo ficava mais pesado.  A terra sugando seus pés. Não se atrevia a olhar para trás.  Terror de olhar para frente.

Sozinho, solitário,  fraco diante daquela natureza gigantesca. Seus olhos refletiam. Espelho  das sombras  da ameaça. Rompeu  as marcas, com dificuldade.  Chegou ao local. Ao ponto de disputa. Viu que ali os engenheiros anteriores foram obrigados a fazer uma curva na picada. Não conseguiram obedecer ao projeto. Foi impossível para eles. A companhia não queria. Tinha de ser retilíneo.

Love Craft, gelado, com sua foice alemã, foi abrindo caminho de acordo com o projeto. Reto. Sem curva. Abrindo com as mãos. Lançando os pés.   Com cuidado. Dez, vinte metros. O frio caía a zero grau. A mata se escurecia. Cipós tentavam lhe agarrar. A recompensa de voltar a Londres. Seu cérebro pesava. Mas, seguia.

Estava chegando ao ponto em que os engenheiros anteriores fugiam. Abriu com cuidado os últimos galhos. Quase caiu para trás. Segurou-se aos ramos. Aos troncos. Tudo o que estava nas cartas se abriu aos seus olhos. Uma enorme figueira. Descomunal. Larga, volumosa, alta de atingir os céus. Nem dez homens a abraçariam.

E na escuridão da mata, bolas de luzes a circulavam. Se transformando em caveiras de fogo que iam e vinham.  E o ameaçavam.  Das trevas da mata , surgiu uma bola de fogo maior, e todas as outras puseram a segui-la em direção a Love Craft. Que fugiu, tropeçando em cipós, caindo nas poças, rasgando seu lindo uniforme de engenheiro britânico.

Como notícias de Love Craft  nunca chegaram, foi a última tentativa da Companhia.  A figueira luminosa da noite impusera uma grave derrota.  O projeto teve de ser refeito em forma de curva.

No chão do campo, um barulho ensurdecedor atingiu os ouvidos de João Juvêncio. Eram seus amigos. Os  dois times tentando acordá-lo do transe. Ele se remexia, fazia  caretas. Assustados jogaram-lhe água na cara, no corpo. Ao acordar,  o senhor Love Lacy já tinha ido embora.

João Juvêncio quis saber o que tinha acontecido. Ninguém nunca lhe contou. A partir desta data, nunca mais os jogos foram interrompidos por aquele senhor de calças marrons.