Existiu cinema em Mandaguari?

Seo Leomar veio vindo. Era hora do almoço, sem olhar para os lados,  bem na beirada da cerca, descreveu um ângulo corretíssimo de 90 graus. Entrou portão adentro, segurando firmemente seu guarda-chuva ´sério.

João Juvêncio correu na tentativa de perguntar a ele se realmente em Mandaguari havia existido   um cinema. Não deu tempo. O homem como um bólido gelado já tinha entrado pela porta da cozinha. Talvez pendurando o chapéu na porta e nem houvesse dado um beijo na esposa. João sentiu um vento frio. A temperatura caiu, pensou. E deu meia volta decepcionada.

A esperança de João Juvêncio de se livrar daquela  dúvida cinematográfica  permaneceu cravada em seu coração. Era mais um sinal de um mal que há muito tempo sofria. Trazia consigo mesmo dúvidas de tudo.

Qualquer ideia ou afirmação o deixava contrariado. Enquanto não passasse a limpo, não verificasse,  questionava, negava, desacreditava. Estava sedo até chamado de o chato da turma, não só na escola. Na rua, no campinho de futebol. Em todos os lugares era o chato e não conseguia se controlar.

Com a questão do cinema na cidade a coisa vinha se repetindo. Brigou na aula. Discutiu com um tio. Duvidou de um vizinho. Ninguém o convencia. Sentia que precisava  por que  precisava se curar.  Mas acreditar em quem?  Seu pensamento voou por todas as pessoas. Mas não conseguia escolher alguém para nele crer.

Foi assim que se lembrou de Seo Leomar, o sujeito mais esquivo e fugidio do bairro. Não conversava com ninguém. Cinza, magro e calvo, cara de gente séria. Se ele dissesse que sim, sim,  João Juvêncio aquietaria o facho que o queimava. Por isso, há dias rodeava o portão da casa do homem. Mas, sem sucesso.

Na manhã seguinte, agastado com a situação que oprimia seu peito, talvez até um pouco desorientado, depois do horário escolar,  João Juvêncio  se sentiu atraído por uma grande loja de variedades localizada na praça central da cidade. Entrou nela como quem entra numa geladeira.

Percorreu corredores entre gôndolas super carregadas de mercadorias. Se encantou com as variedades. Cores. Cheiros. Preços. Utilidades. Deu um passo em falso. Será labirintite, perguntou a si mesmo, olhando seu próprio reflexo numa caneca de alumínio.  Um zumbido diferente pingava do silêncio. Os olhos neblinavam. Será que ia desmaiar? Fome? Alucinação? Não queria pedir ajuda.

Procurou a saída da loja. Tomar um ar fresco.  Não reconheceu a porta. Olhou em volta,  tudo diferente de quando entrara, há poucos minutos. As moças vendedoras vagando em uniformes antigos. O senhor do caixa sugava o tempo por um cachimbo na boca. As luzes foram se apagando uma a uma, só um facho  ficou. Atraía magneticamente sua visão .  As paredes ao redor foram se cobrindo de cortinas e a música  A summer Place, de Percy Faith, invadiu seu peito.

Retraiu-se. Sentou no degrau do corredor mais próximo. Um tiro. Uma cavalgada.  Uma perseguição. Olhou assustado para os fundos da loja. Uma grande tela branca, iluminada. Luzes, câmeras, ações. Um beijo cinematográfico.

Personagens, atores. Cenas. Sugado. Levado. Mil  filmes passara, pela sua cabeça. Mergulhado  nestas imagens. Gritava sem voz. Sem fôlego. Tentava voltar a si.

Um condenado na  forca. No instante em que a corda seria puxada, sentiu uma mão em seu ombro. Era seo Leomar, gerente da Loja. Precisa de ajuda? O vento frio balançou as cortinas.

Depois de um copo d’água, suas pupilas se normalizaram, assim como sua pressão sanguínea. Seo Leomar arrumou o blazer cinza,  corrigiu os cadarços do sapato, mirou-se num espelho e confessou. Acho que você teve uma viagem no tempo. Aqui no endereço desta Loja antigamente  funcionava o cinema da cidade. Talvez.

João Juvêncio nunca tinha tido medo de Seo Leomar. Mas, sentiu um certo arrepio congelado naquela explicação. Ao passar pelo caixa, na saída, apresentou um papel para a moça cobrar. Ela deu risada. Isto aqui não é nosso, parece mais com um ingresso de cinema. Olha aí, está escrito E o vento levou… Tem até a data. Antiga.  Década de 60. Apressada, voltou seus olhos para atender outro cliente.

O tempo passou. De vez em quando João Juvêncio perguntava a alguém, a sua mãe, ao seu pai, ao dono da padaria, aos colegas sobre o Seo Leomar. Nunca ninguém o tinha  avistado.