Capitulo 3: O globo da morte na propriedade rural

Os primeiros fogos de artifícios da comemoração do aniversário da cidade, chamando a fanfarra para o toque da alvorada, surpreenderam os oito amigos dispostos em suas boias na nascente do Rio Tabatinga.

As águas claras do rio nem desconfiavam. Só corriam tranquilamente em direção ao Pirapó que corria para o Paranapanema que corria para o Paranazão.

As oito boias. Cinco meninas e três meninos. Um plano. Descobrir onde estava o Globo da morte. Escondido? Funcionando? Não era por bem ou por mal. Só a curiosidade. De todos da cidade.  Mais um orgulho. Quem descobrisse também participaria da glória municipal.

Galinzé assumiu a primeira boia. Como se fosse um Colombo cruzando os mares. Lucy Eny assumiu a boia maior. Capitã.  E determinaram que João Juvêncio ocupasse a última, a oitava. A retaguarda. Ele até gostava que fosse assim para poder sonhar acordado à vontade. Divagando entre ideias e estrelas.]

O único recado importante. O perigo. Nem bem termina terceira curva do rio, existe um poço, um redemoinho, um sumidouro. Ali é bom acelerar a boia e passar bem pertinho da margem, desviando, se encolhendo. Explicou o Galinzé, experiente navegador dos córregos.

E lá se foram rio abaixo. A torre da igreja, lá longe, ia ficando para trás.  Lucy Eny calculando como seria o tal Globo. Galinzé desfrutando da brisa. João Juvêncio olhando para as nuvens, suas formas. Um cachorrinho. Um elefante. Um repolho.

Cada um mergulhado no seu mundo. O Rio Tabatinga, mudo, só chamando-os. Feliz pela visita inesperada. E neste ir-se gostoso, as boias ganhavam mais e mais velocidade.

Desligados, atingiram a região perigosa da terceira curva. Do sumidouro. Galinzé, feliz, deitou-se para ganhar aerodinâmica. Passou como uma flecha pelos obstáculos. Os demais viram como ele fez. E aceleram atrás.  E continuaram a descida.

Menos João Juvêncio que vinha uns cinquenta metros atrás. Entretido. Investigando as taboas. Os bandos de maritacas. Sua boia vinha na velocidade que queria. Mas não era pouca porque a correnteza bem antes do sumidouro imprimia força.

Ele nem percebeu. Quando a boia tocou o sumidouro, um pedaço de madeira girava em torno da boca monstruosa, em altíssima velocidade.  A madeira, como uma hélice desgovernada, enroscou-se à borda da boia de João Juvêncio e, num arranque, num golpe, a fez voar para fora do rio, para cima do barranco. Ao pé da cerca de arame farpado.

Assustado, esgualepado, João Juvêncio se refez prontamente. Tentou gritar para os companheiros, mas eles já iam longe. Dava para ouvir suas vozes lá embaixo. Percebeu-se desamparado. Ia tentar se jogar novamente ao rio, quando ouviu vozes. Sons de máquinas e ferramentas.

Ergueu-se timidamente, olhando por sobre os capins. Quase desfaleceu. Viu com os olhos que a terra há de comer. O Globo da Morte. Lindo. Uma estrutura fantástica de madeira entrelaçada. Luz balão. Tela iluminada. Será que é da altura da igreja? Ele se fazia todas as perguntas. Tentou gritar para os amigos. A voz não saia.  O medo de ser descoberto. O medo de perder aquela visão sensacional.

Atarantado.  Ouviu um barulho de motocicleta sendo acionada. Surgiu por detrás da garagem. Imponente. A porta do Globo se abriu. O ronco e a fumaça entraram. O piloto da motocicleta dominando-a como se domina um touro, dando galeios, pegando embalo. Girou embaixo. Acelerou. A moto rugiu. Gritou. E subiu pelas paredes do Globo. Ganhando altura, velocidade, perigo, emoção. Na horizontal. Na vertical. Na perpendicular.

Foram minutos e mais minutos do mais puro êxtase. O ronco foi diminuindo. A engrenagem da porta se abriu. Mecânicos em risos, em palmas, em comemorações.

O piloto, ao sair da estrutura armada, percorreu um círculo, freou, feliz.  João Juvêncio com o coração na mão, mãos na boca, boca aberta. Viu, claramente visto. E identificou. O piloto retirando o capacete. Abrindo os braços para os abraços. Quem era?

Não conseguiu se conter. Não conseguiu segurar a emoção. Gritou sem querer. É o Jair Marques. Tentou segurar, mas já tinha escapado. O primeiro mecânico ao ouvir e se sentir descoberto, automaticamente, sem pensar, partiu para cima do espião.

Jair tentou acalmar, que não era nada, deixa o menino em paz. Mas já era tarde. O outro mecânico, induzido pelo amigo, também saiu em desabalada carreira para capturar João Juvêncio.  Vendo que seria capturado, talvez castigado, entrou em desespero.

Atirou-se com boia e tudo por sobre a cerca de arame farpado, caindo no leito do Tabatinga, de barriga, misturando-se às aguas, às ondas, aos cardumes de dourados lambaris, aos capins. A boia descontrolada com o salto mergulhou bem no sumidouro, no redemoinho e desta vez não teve chance. Foi engolido pela garganta d´água.

Os mecânicos ao chegarem não encontraram nem sinal ou pista do espião.  Jair ficou desconsolado. Não era para assustar o garoto. Mas não quis brigar com os mecânicos. Ligou novamente a moto e começou a circular em torno do Globo. Matutando. Os mecânicos chateados sentaram-se no banco embaixo do pé de manga.

As águas do redemoinho do Tabatinga deram uma surra formidável em João Juvêncio. Jogaram-no para lá e para cá. Balançaram, agitaram, centrifugaram o menino. Sem forças, só conseguiu respirar quando o buraco d’água, satisfeito, o atirou fora, numa prainha de pedra quilômetros abaixo. Desacordado. Em pesadelo.

O barulho da motocicleta o perseguindo. Tentava fugir, escapar. Mas, era impossível. Os mecânicos o alcançavam. Se debateu por horas, em febre. Sentiu uma agulhada. Um homem de branco. Não foi nada. Moleque novo é muito forte nesta idade.

Só ouvia, não conseguia acordar. A mulher de uniforme branco disse ele viveu uma emoção forte, só vai curar com outra emoção mais forte ainda. O silencio na sala indicava que a situação era grave. Alguém ia precisar arriscar.

Foi aí que sentiu duas mãos fortes que o agarravam. Alguém estaria arriscando? E levado de motocicleta. Pelos sons, pelas cores que mal distinguia, estava na cidade. Fazendo o quê?

A moto acelerou. O povo aplaudiu. Sentiu o ar mais forte. Abriu os olhos. Estava nos braços do Jair. O piloto, em pé, em cima da moto, segurando-o com as pontas dos dedos e manobrando os guidões com os pés. Um fogo quente tomou seu coração. A vida foi retornando forte para seu peito. No final da Avenida, Jair o depositou no chão, nas mãos de seu pai e de sua mãe. E acelerou. Ele também precisava dar vazão àquela emoção.

Daí a pouco seus sete amigos chegaram correndo, molhados, ainda estavam com o coração na mão, preocupados.