Um espelho que muita gente ainda evita encarar

Há quem diga que o 20 de Novembro deveria ser substituído por um “dia da consciência humana”. Há também quem insista em inventar um “dia da consciência branca”, como se isso equilibrasse uma balança que, convenhamos, nunca esteve em equilíbrio. Esses argumentos se repetem ano após ano, como um vinil riscado tocando a mesma faixa, e revelam bem mais sobre a dificuldade de encarar o passado do que sobre qualquer desejo real de igualdade.

Afinal, falar em Consciência Negra não é fragmentar a sociedade; é justamente tentar entender por que ela chegou até aqui tão desigual. É reconhecer que a herança de mais de três séculos de escravização não evaporou com a assinatura de uma lei em 1888. A escravidão deixou marcas fundas, econômicas, culturais, psicossociais, que ainda desenham o mapa da desigualdade no Brasil. Quando se olha para indicadores de renda, expectativa de vida, violência policial, acesso ao ensino superior e representação política, o recorte racial fala mais alto do que qualquer argumento negacionista.

A pergunta que alguns fazem, “por que não existe um dia da consciência branca?”, revela um equívoco de partida. Pessoas brancas nunca precisaram lutar para ter sua humanidade reconhecida. Nunca foram impedidas por lei de estudar, circular, votar, existir. O 20 de Novembro não é sobre criar privilégios; é sobre iluminar feridas que, sem luz, viram feridas eternas.

Já o tal “dia da consciência humana”, embora bonito no papel, funciona como um grande apagador. E apagar, no Brasil, sempre foi um verbo perigoso. Apaga-se a memória da violência, a história dos quilombos, o protagonismo das lideranças negras, a construção cultural que moldou o país. Quando tudo vira “humano”, nada vira responsabilidade de ninguém.

É aqui que entra a palavra mais incômoda de todas, dívida histórica. Muitos rejeitam o termo por acharem que se trata de culpar indivíduos brancos de hoje pelos crimes de séculos atrás. Não é isso. A dívida não é pessoal; é estrutural. Não se pede que alguém assuma culpas que não cometeu, mas que reconheça que vive num país construído sobre desigualdades herdadas e que só podem ser corrigidas com políticas públicas que levem raça em consideração.

E, sim, há quem torça o nariz para ações afirmativas. Mas é curioso: se o país passa mais de 300 anos criando barreiras para um grupo e apenas algumas décadas criando portas, a irritação nunca é pela existência das barreiras, apenas pela abertura das portas.

O 20 de Novembro existe justamente para expor esse desconforto. Para lembrar que Zumbi e Dandara não são personagens de um passado distante, mas símbolos de um Brasil que ainda luta para não apagar sua própria história. O dia não é um aceno a um único grupo, mas um convite, urgente, para que a sociedade olhe para si mesma sem filtros, sem slogans vazios, sem o conforto das equivalências falsas.

Falar de Consciência Negra é, em essência, falar de humanidade. Mas de uma humanidade concreta, com passado, com feridas, com nomes e datas. Não daquela humanidade genérica que serve mais para fugir do debate do que para enfrentá-lo.

Porque, no fim, negar a necessidade de um dia de consciência negra não é defender igualdade; é defender silêncio. E silêncio, em um país que ainda não resolveu seu passado, nunca foi sinônimo de paz, apenas de conveniência.