Sharenting: quando o orgulho dos pais nas redes vira risco para crianças

O bebê ainda nem nasceu, mas já tem perfil no Instagram, enxoval patrocinado e milhares de seguidores que acompanham cada ultrassom. A cena, cada vez mais comum, ganhou nome na literatura acadêmica: sharenting – junção de share (compartilhar) e parenting (parentalidade). O fenômeno é tema de um estudo conduzido pelo sociólogo Lucas Garcia, professor da UniCesumar de Maringá, e pela estudante de psicologia Sofia Ivantes. Convidados pela reportagem, os pesquisadores detalharam os avanços e perigos de expor crianças na era digital.

Da foto inocente ao sequestro de identidade

“O sharenting não é crime, mas abre a porta para crimes”, resume Lucas. Redes de pedofilia, roubo de identidade e golpes virtuais costumam se alimentar de imagens aparentemente inofensivas como, por exemplo, o primeiro banho do recém‑nascido, a queda engraçada no quintal ou a rotina escolar postada sem filtros. “Sociedades médicas já recomendam que o rosto da criança seja coberto por emoji, justamente para frear a reutilização dessas fotos em perfis falsos”, alertou.

A orientação vale também para celebridades e influenciadores. O jornalista esportivo Mauro César Pereira esconde o filho atrás de um emoticon, a jornalista Andréia Sadi jamais mostrou o rosto dos gêmeos. Na outra ponta, perfis como o da influenciadora Virgínia Fonseca, onde as filhas aparecem 24h por dia tornam‑se modelo para pais que buscam likes e, muitas vezes, frustração. “Quanto mais visualização, maior a monetização. Mas o preço é alto”, pontua Sofia.

Quando o passado digital engole a identidade

O excesso de exposição, segundo Sofia, interfere na construção da personalidade. “Essas crianças chegam à adolescência com uma identidade digital já pronta. Todo mundo conhece suas vulnerabilidades, seus momentos de fragilidade. Elas terão liberdade para ser quem quiserem ou ficarão presas ao que os seguidores esperam?”, questiona. O caminho futuro pode ser dois extremos: repetir o comportamento familiar, normalizando a superexposição, ou desenvolver aversão às redes, buscando uma vida reservada.

Dados que assustam

Estudos internacionais apontam que 80 % das crianças de até dois anos já têm alguma presença digital criada pelos pais. No Brasil, um levantamento do Comitê Gestor da Internet indica que 39% dos responsáveis postam fotos dos filhos pelo menos uma vez por semana. “O problema não está no post isolado, mas no volume e na falta de controle sobre quem vê”, reforça Lucas.

Regras de ouro para um sharenting seguro

Para reduzir danos sem impor abstinência digital, os especialistas elencam um guia prático:

Perfis privados
Mantenha as contas fechadas e aprove menos pessoas do que necessário.

Stories restritos
Prefira publicações que desaparecem em 24h e utilize a lista de “melhores amigos”.

Rosto e rotina preservados
Evite uniforme escolar, portas de casa, locais de atividades e, sempre que possível, descaracterize o rosto da criança.

Nada de partes íntimas
Fotos de banho ou sem roupa são o principal alimento de redes de pedofilia.

Menos é mais
O álbum que hoje rende elogios pode virar material de bullying amanhã. “Pense se a imagem envergonharia seu filho aos 15 anos”, sugere Sofia.

Entre orgulho e responsabilidade

Lucas é pai de um menino de um ano e três meses e admite a tentação de compartilhar cada conquista. “Posto pouco, só para a família. Se até nós, pesquisadores, precisamos frear o ímpeto, imagina quem não tem acesso a essas informações”. Por isso ele defende campanhas públicas e inclusão do tema em consultas pediátricas.

O sharenting é um gesto de afeto e orgulho, mas, como lembra Sofia, “amor também é proteger a privacidade de quem ainda não pode decidir”.