O amigo muy secreto

Zeferão, naquela manhã, mais uma vez olhou-se ao espelho. Tentando se achar bonito. Fez uma careta. Seus traços guardavam uma realidade da qual ele tentava fugir.Só durante as noites, deitado em seu quarto, ele conseguia ter a cara com a qual ele sonhava.

Ou durante os longos goles de cerveja barata.  Ou corotinho. Nestes momentos, tinha capacidade de se sentir sem os traços maternos ou paternos.

Após ressacas intermináveis, fugia para o escritório. Único lugar em que se sentia bem. Ao lado do patrão, aos poucos ia se transformando. Minuto a minuto. Lá pelas dez horas tava igualzinho ao patrão.

Dez e meia, o patrão dava um toque. Você não é um bonito como nós. Não com estas palavras. Mas usando indiretas sutis que doem mais que a faca das palavras diretas.

Pra não sofrer o efeito da indireta, Zeferão aplicava um golpe no próprio cérebro. Ele fala assim porque sou mais bonito que ele. Decerto.

E voltava cabisbaixo para sua mesa onde tinha guardado em uma pasta um plano, um projeto para eliminar da cidade todas as pessoas que tivessem os mesmos traços que ele.

Não havendo aqueles seus semelhantes, ninguém iria se lembrar que ele não tinha os traços retilíneos do patrão.

Foi no finalzinho do ano. Zeferão tinha reescrito seu projeto. Mais cirúrgico. De limpeza da cidade.

Logo após, desceu para uma daquelas comemorações de dezembro.

Amigo secreto. Casa de uma tia.  Gente chegando. Abraços alegres. Beijos sem fim.  Batucada num canto. Funk no outro. Mãos que traziam pratos para compartilharem.

Pudins. Bolos de fubá. Arroz doce.  Pavês. Pipoca. Cocadas. Risos sem fim em cada roda de amigos. Gente igual a ele sendo feliz-sem-fim.

Festejavam enquanto Zeferão, a contragosto, fechado em seu canto, xingava em silêncio.

Bem que  o patrão poderia ter me convidado para tomar uma dose de uísque, no escritório, mesmo me escanteando num canto solitário.

Artigo do professor Donizete Donha