“É bom aprender, a vida é cruel”

O leitor provavelmente estranhou abrir uma edição especial de Natal e se deparar com este título. Em tese, esta é a época das mensagens suaves, sentimentais e cheias de positividade. Mas acredito que os demais articulistas desta edição já se encarregaram dessa parte. Então, vamos ao que interessa.

O verso da música Homem Primata, composta em meados dos anos 80 por Ciro Pessoa, Marcelo Fromer, Nando Reis e Sérgio Britto, é uma verdadeira paulada. Ele traz de volta para a realidade quem insiste em acreditar que está “por cima da carne seca” e, por isso, imune a qualquer revés. Geralmente são pessoas que, ao conquistarem algum tipo de poder, erguem ao redor de si uma realidade paralela, convencidas de que a fase de bonança será eterna.

Quem nunca ouviu falar de alguém que ganhou na loteria, acreditou que o dinheiro seria infinito, gastou como se não houvesse amanhã e, pouco tempo depois, estava falido? Ou de quem, após ser eleito para um cargo público, passou a agir como se o poder não tivesse prazo de validade e acabou derrotado pelo próprio ego?

Ao longo de mais de meio século de vida, encontrei muitos personagens assim. Gente deslumbrada com boa condição financeira, com status social e, claro, com poder político. Em todos os casos, havia um traço comum: julgavam-se privilegiados, superiores, intocáveis. Não admitiam, em hipótese alguma, serem confrontados ou questionados. Agiam com arrogância, vestiam a soberba como se fosse um troféu e, mesmo assim, acreditavam sinceramente que despertavam admiração.

Mas, como diz o ditado, o mundo gira — para os que acreditam que a Terra é plana, ela capota. Quem se deixa levar por esse transe social quase sempre vê seu castelo ruir. E quando isso acontece, o impacto é grande: o choque de realidade costuma provocar no ego um estrago tão profundo quanto o que um choque elétrico de alta voltagem causa no corpo.

Para quem segue a tradição de aproveitar esta época do ano para fazer um retrospecto da vida, talvez valha incluir uma pergunta essencial: será que minhas atitudes estão alinhadas com a realidade, ou estou vivendo em um mundo de fantasia, prestes a desmoronar quando o relógio marcar meia-noite e a carruagem virar abóbora?

Nos contos de fadas, o final é sempre o mesmo: “e viveram felizes para sempre”. Mas a vida, como sabemos, não é um conto de fadas. E é justamente por isso que vale lembrar: “é bom aprender, a vida é cruel”.

Artigo escrito pelo jornalista André de Canini para o Jornal Agora especial de Natal