Ruas de nossa cidade
O sino da igreja enchia a manhã. Seus sons acompanhavam nossos passos até a
Escola. O café aromando pelos chaminés. A carroça do padeiro já ia lá longe. Com o sininho no pescoço do cavalo baio. As donas de casa da acudiam rapidamente nos portões, com medo de o leite ferver no fogão a lenha. Quando isso acontecia um cheiro de doce de leite corria pelos jardins.
Todos os dias a gente olhava com curiosidade para uma das residências do lado direito. Toda marrom. Suas janelas dormindo sempre, atrás dos altos portões de madeira. Lá morava o Lafayete. O pai dele tinha dado nomes históricos aos filhos. De filósofos, políticos, artistas.
Ao nos aproximarmos da escola, eram outros aromas e outros sabores que nos seduziam. Vendedores ambulantes. Gritos. Apitos. Matraca. Cada um disputava a atenção dos estudantes de uma forma original. Lembro do homem do biju com uma roleta de 30 números. O sorveteiro com sua corneta marcial chamando para batalhas de guloseimas. O quebra-queixo que fazia rimas e trovas. O senhor que vendia biscoitos. Este inventava e transformava as palavras. A gente ia repetindo. Até nas aulas. Um marmanjo ou outro, no meio do silêncio, gritava Olha o biscofinooo! A professora fingia ficar muito zangada. Ela também tinha comprado biscoitos na infância.
Lafayete estava terminando o colegial quando nós chegamos para a escola. Víamos. Ele passava sempre apressado. Todo de preto. Preocupado com algu.a questão decerto muito importante. Com as mãos cheias de livros. De discos. De jornais. Foi, uma vez, até chamado para fazer uma fala, para todos, sobre os benefícios da luz da lua para os vegetais. Ficou consagrado na escola. Dizem que depois deste dia, para dar conta da fama e do respeito que ganhara, Lafayete começou a dedicar-se mais e mais. E na busca de conhecimentos foi se fechando. Se fechando. Até se fechar
No retorno da escola para casa, as ruas se ampliavam deitadas ao sol forte de junho. Engolidos pela fome, os grupos de estudantes caminhavam céleres para os almoços. Nesta caminhada, a cada portão , o cheiro de comida que vinha das cozinhas aguçava nosso apetite. Era certeza que naquele dia a carroça do bucheiro tinha passado. O bife acebolado. O fígado. Os miúdos. O mocotó. Quando abríamos o portão de casa, nem dava tempo de lavar as mãos. A corrida para a mesa, o prato, a salada. Verduras que vinham em cestos. Verdureiros que sabiam o gosto de cada casa.
Na volta, pouca atenção prestávamos no carteiro que sempre estava parado em frente à casa do Lafayete. Pilhas e pilhas de cartas. A curiosidade roía nossas almas. Que tipo de cartas são aquelas? E tantas. Nossos corações ficavam mais aguçados ainda com as explicações que nasciam não sabe onde, mas o Mateus que trazia as novidades. Que Lafayete era chamado para ser astronauta, pisar na lua, entrar em órbita. Que Lafayete tinha descoberto a fórmula da bomba atômica, por isso, os exércitos do mundo todo queriam capturá-lo. No outro dia, era a fórmula do xarope da coca-cola.
Um dia, a diretora da escola anunciou que, brevemente, Lafayete iria fazer uma palestra sobre ciências ocultas. Caramba, aquele anúncio fez a gente descobrir que ele era quase um ídolo para nós. Naquelas semanas que antecediam o acontecimento, a gente passava em frente da casa dele olhando com reverência e admiração. Era para cada um preparar uma pergunta. Os professores agitavam o evento.
Foi aí que o Fernandes e o William tiveram a coragem de pensar o plano que estragou tudo. Era para a gente ir disfarçando atrás da carroça do peixeiro e, no instante em que o carteiro chegasse com a pilha de correspondências, a gente trombasse, derrubasse, lesse os envelopes da carta. Descobrir os segredos de Lafayete. Tudo tem de ser rápido, hein?
Não deu outra. Nossos planos não falhavam nunca. Derrubamos, não era para tanto, o senhor Valdemar carteiro, e nos apoderamos das cartas. Por pouco tempo. Mas deu tempo para ver. Eram cartas perfumadas. Cheirosas. Com letras bordadas. Eram namoradas do Lafayete. Por correspondência. Do Brasil todo. Do Oyapoque ao Chuí, como dizia o professor de Geografia.
Ao ouvir o barulho, Lafayete apareceu. Nunca mais o tínhamos visto. Pálido, espantado. Compreendeu o que tinha acontecido. Juntou uma a uma. Formou um pacote. Entrou para sua residência fechada.
No outro dia, na sala da diretoria todos nós assinamos o Livro de Advertências. Muito tempo depois, as ruas já tinham ganhado asfalto. Casas de modelos modernos. Supermercados. Telefone. Internet. Todos aqueles meninos da rua formado profissionalmente. Só a casa de Lafayete continuava fechada. Lá dentro, ele também. Se comunicando com o mundo através de envelopes.