O último banco da Praça

As conversas corriam soltas.  Nasciam nas escolas. Escorriam pelos bares. Percorriam as ruas. Dominavam todos os setores da cidade. Iam despertando, pouco e pouco,  curiosidades e desejos. Como mistérios nascidos nos cantos dos jardins. Quem não estava por dentro, ia juntando pedaços de frases aqui  e ali, até, mais ou menos montar o quebra cabeça; então, o jovem, mosca no mel, já estava enredado, preso. Caíra na armadilha da vida.

João Juvêncio estava na idade de brincar com a existência. Garantiu a todos que com ele seria diferente. Não iria cair no mundinho romântico da praça. Não seria afetado pela atmofesra noturna dos domingos apaixonados, nem suspiraria em torno da fonte luminosa. Sou realista, não sou romântico, afirmou chutando uma tampinha de cerveja, em frente ao cinema.

Ele sabia sobre as transformações que a praça central provocava. Era de lá que seus colegas, amigos e amigas, de repente, desabrochavam. Se permitiam novos   assuntos. Assumiam novas atitudes.  Trocavam de casca.  Se não fosse até lá, ia ficar para trás. Para sempre. Sentiu a sentença da vida. Todos cobravam dele? Aqui, pra vocês, ó!

Bateu o pé. Desafiador. Comigo, não, violão. Aposto contra todos. Atravessarei a praça, na diagonal, na vertical, e,  confirmo, não serei afetado por paixonite nenhuma. A roda de amigos não discutia. Já conheciam João Juvêncio. Ele já havia aprontado em muitas  festinhas de aniversário. Nos bailinhos do Boliche. Nas matinés do Cinema. Rebelde, indomável, sempre saía invicto. Seu coração não era para amores, assim era conhecido.

Marcaram, então, o dia do tira-teima. A aposta volumosa. Semana toda, todos aguardando. João irá enfrentar a Praça? Desafio lançado.

João esperou o  domingo como quem aguarda um duelo. A chuva, o sol, a flor. Ao subir pela Avenida já sentia influências. A brisa da boca da noite perfumada, adocicada. As meninas da escola transmutadas em lindas moças. Seus colegas, os rapazes,  impondo respeito. João de peito esfufado lutava para combater as forças vitais de todos os sentimentos.

Lambretas, corcéis, opalas, cinquentinhas rasgando as ruas.  Luzes que se acendiam. Penteados e vestidos refletindo  estrelas. Realmente, era um mundo diverso, diferente. E ele, jovem de tudo, foi entrando, chegando, se introduzindo sem olhar para trás. Seria fichinha resistir?

Noite da caça e do caçador ao mesmo tempo. Sentiu que o aprendizado era pra já. Não havia para depois. O rolo compressor da mocidade não deixa estrada para amanhã. Ao primeiro passo, divisou, avistou, famílias espalhadas em conversações nos primeiros bancos.

Conforme foi ganhando terreno, tateando passos, o encanto das revelações se impôs. Casais em bancos.  Beijos infinitos. Abraços. Mãos entrelaçadas. Suspiros incontidos. Todo mundo da escola. Da igreja. Da rua. Do futebol. Em namoros, em flertes, em jogos de conquista. Continuou caminhando pelo labirinto. Coração na mão.

Seu sangue não era mais o mesmo ao se deparar, no centro da praça,  com o grande  círculo em volta da Fonte Luminosa.  Sob o reflexo das luzes na água que voava em figuras geométricas, rapazes de todas as brilhantinas da vida, vestidos à moda dos filmes românticos, circulavam em sentido horário.

Sem querer demonstrar surpresa, compreendeu. As moças vinham na contramão, passinhos  macios, no anti-horário das horas mais sublimes. De cara, João Juvêncio não entendeu. O diálogo que ocorria a cada encontro sincrônico  do par, na volta, na passagem entre ambos. Num instante-segundo, as palavras voavam velozes no compasso  das batidas dos corações.

E daquela roda-gigante-terrestre, vez em quando, voava, sumia, surgia um novo casal. E as mãos dadas escreviam uma nova história a partir daquele ponto. Ou já teriam outros pontos? Outras linhas shakespearianas? A praça era só o capítulo central da trama?

E aquele rodamoinho gostoso da existência empurrou, impulsionou, levou João para o show da vida. De um olhar de esguelha até ao final da volta, se fez a batalha mais dura para ele. Tinha avistado Betty. Da sala do Terceirão.  Como nunca soube?  Seria paixão antiga guardada dentro do cofre do coração ou os ares da praça que o venciam, o derrotavam? Combalido, tomado por uma irresistível onda,  soube que amava aquela menina, a Betty, desde não sei quando.  O mistério gostoso de amar.

As colegas descobriram imediatamente. Conheciam todos os sintomas do amor. João Juvêncio levantou bandeira branca. Derrotado pela paixão. O cupido da praça havia atingido seu coração rebelde.

Caminharam juntos, juntinhos, disfarçando que olhavam outros casais que os olhavam disfarçadamente. Várias voltas intermináveis para chegar ao  primeiro beijo.  Repique de fogos e luzes. Vários domingos até o primeiro banco.  Agora eram João e Betty.

Aprenderam. Não era assim de primeira que se conquistava o primeiro banco da praça. Assim, como os corações, era necessário, aos poucos, ir conquistando o melhor lugar ao luar.  Conforme o namoro ia ganhando oficiais reconhecimentos, o casal ia galgando as primícias de uma árvore mais fechada. Um local mais perto da penumbra. O banco mais oculto do apito do guarda.

E, assim, souberam, através da enciclopédia do namoro,  que existia toda uma geografia dos bancos da praça. Mais à frente do cinema valia tanto. Ao lado do círculo central era outro o valor. Olhando para a agência da Copel, na Piquiri, já era uma fortuna imensa. A cada domingo, a cada encontro, avançavam uma casa no jogo do amor.

João Juvêncio e Betty e toda aquela moçada da época  viveram cada segundo daquele tempo sem perder uma gota da vida. Extraíram da existência boa toda seiva que o jardim colorido produzia. Tudo floria. Musicava. Desenhava. A vida sem sustos.

Mas.   Sem aviso e sem notícia.  Num domingo, chegaram todos alvissareiros. Porém, a praça estava fechada. Escura. Obstruída. Cercada. Ia ser destruída e remodelada. Ninguém perguntou àqueles corações em duplas se queriam uma praça nova.

Tudo que havia nela foi considerado antigo, antiquado, ultrapassado. Sumiram a fonte luminosa, os sete anões do jardim da fonte, os canteiros. Os tão disputados bancos também sumiram.

O jeito foi o jeito. Semanas, meses, semestres, anos sem a praça. Quando inauguraram a nova praça, todos aqueles jovens casais já tinham alçado novos voos. Era o tempo de outros jovens chegarem.

João e Betty, todos os outros apaixonados casais esqueceram. Deixaram a praça de herança para outros corações. O nunca mais se tornou uma lei. A praça e seus amores foi esmorecendo, se apagando da memória. Passou a viver apenas em sonhos fugidios e saudosos.

Mas, dia destes, João ouviu um burburinho nas redes sociais. Burburinho como naqueles tempos bons da escola. Prestou atenção nas conversas.  Foi tentando decifrar do mesmo jeito que ele tinha feito nos corredores do colégio. Alguém tinha descoberto que, nestes anos todos de exílio, de saudade, de esquecimento, de abandono, um daqueles bancos havia  sobrevivido num canto da praça reformada.

João Juvêncio correu lá. Desconfiando que era mentira. Não acreditava. Viu com os próprios olhos.  Estava lá, sim. Um restinho da praça antiga guardada naquele banco. Não resistiu. Clicou. Mandou uma foto para Betty. E também para todos os casais daquela época. Os que resistiram. Os que se desmacharam. Sentou-se. E viu, reviu de olhos fechados todos os momentos bons vividos sob a influência de Cupido,  rodando, rodopiando,  namorando na Praça Central da cidade.