O Litro de Leite Caitu

Através do vidro da  janela da casa de madeira, João Juvêncio viu do outro lado da rua. Na casa em frente.  Marina. Ela vinha receber o litro de leite Caitu. Manhã chuvosa. Se equilibrando com uma sombrinha. Botinhas brancas. Vestido tubinho. Cabelos cortados no estilo Chanel.

O entregador do leite, após a entrega, saiu em disparada atrás da Kombi. Que outro quintal também o estava aguardando. Lá embaixo vinha subindo o padeiro, com sua carroça amarela. O dia amanhecia. O café da manhã perfumava  a rua.

À mesa, pão feito em casa, bolo de fubá.  João, coração na mão, pensando na menina do portão à frente, perguntou para a tia quem era.  João tinha vindo passar uns dias na casa dos tios. Morava em outra cidade. Fora mandado para cá. Os pais estavam tentando se entender. Algumas rusgas. Terceira tentativa de salvar o casamento.

João se sentia culpado nem sabia de quê. A tia quebrou a torrada levemente ao ouvir a pergunta do sobrinho.  Fez um gesto sutil para que não deixasse o tio ouvir. Mas, continuou olhando para ele. João nunca conseguiu decifrar se aquele olhar da tia era de espanto ou reprovação.

No outro dia, a mesma cena. O litro de leite Caitu. Marina. O café da manhã. O coração aos saltos. O tio e a tia em silêncio. Antes de retornar para o quarto, João via o tio sair para trabalhar na máquina de beneficiamento de café. A casa caía em um profundo silêncio. A tia se fechava na cozinha.  Sobrava a janela para espiar lá fora.  Pensamentos e culpas. Por que tia Soraya se esconde de mim  enquanto o tio não chega? Tão diferente da casa de Tia Lurdes. Lá todo mundo brinca e conversa comigo.

Teve de implorar para poder sair por alguns minutos, algumas horas, alguns passeios daquela casa em penumbra. Bater asas. Conhecer a praça. Passou em frente ao cinema. Não queria voltar para a casa dos tios.  Desceu a Avenida. Viu as lojas de tecidos. Pernambucanas. Buri. Riachuelo.  Precisava de cores para se distrair.

Que  tio o mandasse embora, era melhor do que ficar neste clima.

Quando o sino da matriz bateu onze horas. Medo.  Tinha de retornar antes do tio.  Ao virar a esquina, será que é ela?  Marina estava no portão. Colocando o litro vazio para que o entregador trocasse ao passar. Ela, ao percebê-lo, acenou bem discretamente e apontou para a janela. Depois correu para dentro. Para os fundos. Um cachorrinho latiu correndo atrás dela.

Sem noção dos perigos, João Juvêncio não conseguiu traçar planos, mapas e trajetos. Céus e terra se misturaram em sua cabeça. Só foi se dar conta, dentro do quarto. Atravessara a rua. Furtara a embalagem. O litro brilhando de limpinho. Era uma taça, um troféu em suas mãos. Uma metonímia de Marina. O que será que quer dizer Caitu?

Ia saindo do quarto atendendo ao chamado da Tia para almoçar. Teve de interromper os passos. O Tio, de mau humor, trocando, com força, as cadeiras de lugar. Quando é que este menino volta pra casa dele?  É um perigo. Ele se parece muito com o pai. Vai cometer os mesmos erros na vida. Só de olhar já sinto que não é boa coisa.

Um soco na boca do estômago. João perdeu a fome. Se atirou à cama. Olhando a embalagem de leite. O vidro. Era assim que seu tio o olhava. Todos o viam assim? Qual erro seu pai carregava? Então era por isso que sua tia se fechava na cozinha?

Jurou. Fico nesta casa só mais um dia. Para poder ver Marina amanhã, no portão. À noite, o sono não veio. Ficou imaginando ela. E a imagem dela foi ficando tão nítida, tão cheia de luz, em sua cabeça, que  João pegou a tinta guache da mochila e,  na embalagem, no litro transparente que roubara/ganhara começou a pintar a figura de Marina. Colorida. Alegre. Cercada pelo jardim. Pell portão. Duma alegria de um tipo que nunca tinha sentido. Foram horas desenhando. Ficou bom. Igualzinha.

Foram poucas horas de sono. O Sol invadindo seu quarto era o sinal. Hora de rever Marina. E conferir. Ela veio saindo. Através do corredor ao lado da grande varanda. João aguardando para comparar. Queria ver as duas juntas. A real e a pintura.  Um momento gostoso, como nunca. Faltava um segundo.

O leiteiro gesticulava. Deu para entender. Cadê o litro de leite vazio? O coração de João explodiu. A mãe da menina já vinha ver o que estava acontecendo. Ia dar  confusão. Tomou coragem. Saiu pela porta da sala. Pulou o portãozinho verde de madeira.

Entregou o litro de leite decorado, pintado, desenhado. Marina, pálida, viu que o mundo ia cair em sua cabeça. A mãe tinha sido rápida. Entendido tudo. Estava acalmando a situação. Corações jovens são barcos em aventura. Mas o tio de João, sempre rápido para aplicar venenos,  veio ver o que estava acontecendo.

E sem saber o que era, agarrou o jovem pelos colarinhos. Prometeu-lhe  surra, para toda a vizinhança ouvir. Vou ligar agora mesmo para seu pai vir te buscar. O fruto não cai longe da árvore. Gritou e esperneou, mesmo que a mãe de Marina pedisse calma. Está tudo resolvido, senhor, é coisa de criança. Não precisa  castigar ninguém, não.

Marina fez questão de ver o Jipe que veio buscar João partir. Acenar para ele.  Ficar vendo o carro ir se distanciando para os lados da Caixa d´Agua. Tomar a rodovia e desaparecer.

Alguns anos depois, já quase formado, João retornou à cidade. Em um de seus passeios para aquietar o passado, ao passar por uma loja, viu na vitrine, um objeto que o tragou como um trem em viagem por uma longa ferrovia. Era o litro de leite em que ele tinha pintado Marina. Quis entrar. E o medo?  Relutou. Tentou novamente. Não teve coragem de entrar. Foi embora se lembrando de sua doce aventura juvenil.

Lá dentro da loja, Marina. Nunca retirava aquela obra de arte de sua vitrine na esperança de que seu pintor um dia reaparecesse. Entrasse pela porta da loja. E novamente seus olhares se reencontrassem.