O Campo dos Japoneses

Chuva forte, tarde fria. Elieser, que sempre trazia novos limites , não propôs. Declarou. Impôs. Criou um tumulto. Tirou todo mundo da zona de conforto. Até agora o campinho foi nosso limite. Precisamos dar um passo maior que nossas pernas.

Pegos de surpresa, os projetos-de-jogadores, todos,  titubearam. Até agora, o América jogou onde? Somente em seu campinho.  Está mais que na hora de avançarmos. Existem outros campos na cidade. São longe? São. São maiores? São. O xerife da turma reinava.

Virou um burburinho. Era na varanda da casa da Dona Vina. Local aberto para a democracia do ameriquinha que estava para nascer. Três ou quatro acharam é muito para a nossa cabeça. Vamos ficar por aqui mesmo. Quatro ou cinco olharam para o futuro. Seria bom, né. Sonhando com a amplidão do porvir.

Dois ou três se encolheram. Só assistiram ao duelo de opiniões.  E a discussão foi se incendiando como é  costume em cabeças-crianças.

Foi nesta hora que, sentindo se incomodado com a discussão, não gostando de conflitos que não  fossem aqueles provocados por ele mesmo, o Edmilson veio com panos molhados. Gente, é só uma proposta. É normal alguns considerarem boa, outros, nem tanto.  Precisamos entrar num acordo.

Foi a primeira missão verdadeiramente diplomática dele. E por anos afora, ele foi o senhor panos quentes do grupo. Só que, vez em quando, quando a paz reinava azul, ele, ele mesmo, o senhor Edmilson arrumava um jeito de jogar fósforo e  gasolina. E o pau torava. Até que ele pudesse  novamente levantar a bandeira branca para todos. E o jogo recomeçava. Se sentia bem neste papel.

Achando que faltava alguma parte na proposta do Elieser, o Mococa questionou você só não disse onde, em qual campo quer levar o América para jogar. Elieser matou no peito a provocação e disparou. Oras, a gente poderia começar pelo Campo dos Japoneses.

Caramba, o Campo dos Japoneses! Em todas as cabeças ali reunidas, sentadas em bancos e cadeiras,  passou a imagem do grande campo. Longínquo. Traves enormes. Gols emocionantes. Adversários poderosos. Aproveitando o susto, Elieser garantiu que já havia até  marcado um jogo.  Um frio de espanto percorreu a varanda. Passou pelos velhos tênis empoeirados. Estacionou  na janela. Um jogo no Campo dos Japoneses!

Vamos jogar contra o Bangu. Vai ser nosso batismo de fogo e poeira. O campo dos japoneses não era gramado naquela época. Em caso de sol, pó e sede. Em caso de chuva, barro e uniformes estraçalhados.

Logo contra o Bangu? Ninguém teve coragem de questionar. Mas a luzinha amarela da preocupação se acendeu.  O Bangu formado só por cobras criadas . Meninos expulsos das escolas. As histórias que sabiam daquele time eram de arrepiar. Que não aceitavam perder. Que chegavam junto nas canelas. Que no final do jogo ameaçavam se apropriar do uniforme dos adversários.

Temos que entrar para a história, impôs o Edmilson. O silêncio só não era total porque Dona Vina avisou. Estou ouvindo tudo, tudinho. Caso vocês forem mesmo, é bom cada um avisar sua mãe. O rolo vai ser grande. Quem avisa amigo é.

Será que avisaram? Todos garantiam que sim. Até hoje garantem. A dúvida mora,  persiste em cada olhar. Até hoje quando recordam. Riem.

O jogo seria no meio do mês de  outubro.  No Dia da Criança.  Elieser e Edmilson tinham feito as tratativas. Escolheram a data com faro de marketing. Para marcar, garantiu Edmilson, olhos brilhando. Vai ser um sucesso. As escolas sem aulas, todo mundo pode ir ver. Garanto pra vocês, vai ser o primeiro passo na conquista do  maior estádio  da cidade,  o MEC é nossa meta. Poxa, o MEC, jogar no mesmo gramado em que pisaram Tiãozinho, Lescano, Castro e Jangada, pensou Itamar, sonhando acordado.

Faltava uma semana quando a dupla comunicou aos amigos. Cara, teve gente que esqueceu até as tarefas da escola. Queriam treinar mais.  Não dar vexame. As reuniões sob o Abacateiro Frondoso se aqueceram.  Cada um trazia suas preocupações.

O Lairton, goleiro que além de voador, trazia sempre  histórias e anedotas, não teve medo de lembrar. Gente, vamos pensar bem. Tem o jogo. Tem o campo.  Mas, tem também toda uma rua  para chegar até lá. Alguém se esqueceu que no meio do caminho existe a Turma do Sadrak. Eles são doidos para nos destruir.

Ao saber das preocupações da turminha do time com os sadraques, Dona Vina já sabia, mas ficou de bico calado. Sadrak e seu secretário-chefe-do-bando estavam iniciando seus dias de profissionais como mecânicos da Oficina do  Bichara. Tinha visto um deles mexendo no motor de um Karman-ghia vermelho.

Ela confiava desconfiando. Os sadraques não são bestas de repetirem as antigas confusões. Não vão querer perder o precioso emprego em briga de ruas. E ficou caladinha.

Sem saberem disso, a conversa continuou no rumo da prosa. O Tarcísio deu o toque. Havia também a casa da Dona Lamparina, mulher brava, cacete, que segundo as conversas,  jogava feitiço em quem passasse por lá.

Esta prosa da tarde foi um banho de água fria nos planos de conquista do mundo esportivo daquela galerinha.  Todo mundo foi pra casa dominado por mil preocupações. Dormiram pensando. Como chegar ao Campo de Japoneses enfrentando  tais obstáculos? Intransponíveis? O Jamil até imaginou rotas alternativas, labirínticas para evitar os problemas.

A gente podia subir pela Avenida. Passar pela Fábrica de Sal. Pela Oficina do Bichara. Depois a Fábrica de Carroças. A  Sodinha Atlântica é o sinal que devemos virar, à direita, e passarmos pela Esquadrias Brasília. Pronto. Chegaremos lá, sem passar pelos perigos. Evitamos os problemas.

Mococa deu risada. Você está se esquecendo que se descermos em grupo ou separados seremos pegos pelo Inspetor de Menores e de Quarteirões, o , como é mesmo o nome dele? Isso, o Paulinho Linha Dura. Aí, sim que nossas mães e pais vão ficar bronqueados.

Cada um deve ter pensado. Puxa. Furou. Estamos cercados. E, depois, sozinho ficou imaginando os passos da aventura. Quadra por quadra. A pé. O time descendo. Os mais corajosos, dois ou três, à frente. Será que os sadraques aparecerão? E a velha dos feitiços? As imagens indo e vindo nos pensamentos mais atrapalhados, atravessados. Porém, a vontade de jogar. Num campo grande, então, nem fale, gritava alto.

O Lairton imaginava  voos, pontes, defesas fantásticas. Orlando sonhava em cortar os cruzamentos dos adversários, matando a bola, no terrão, e já lançando pro lateral, aguardando o passe de volta para cruzar na área. E sair para o abraço do gol.

Fantasias e medos povoaram as mentes daqueles meninos, noites afora. No dia seguinte, compartilhavam os medos e as esperanças. Sob as sombras do abacateiro em flor

No dia marcado para o jogo, se reuniram no local onde sempre brotava uma energia boa. Sob galhos e abacates.. Longas conversas. Depois passaram na casa da dona  Vina. Se empanturraram de água fresca.  Cada um com sua mochilinha na mão.

Partiram, ao chegarem à primeira esquina, o Nei ousou falar para os maiores e para os menores. Gente, vamos esconder o medo. Cada passo tem de ser firme. Na hora que vacilar, olhe somente para frente. Não podemos recuar. Nem para tomar impulso. Daqui pra frente é nossa a história.

Injetados de ânimo retomaram a viagem com mais ímpeto. A cada casa, a cada rua cortada, a apreensão crescia. O medo espiava por sob os olhos, corria pelas joelheiras. O barulho da serraria, monótono, contínuo, rouco foi acompanhando a primeira excursão do América. Ao passar pela rua dos Sadraques viram, de rabo de olho, os caras, todos,  sentados no meio fio. Um deles, dos sadraques, se levantou.  O América em peso estacou. Aguardando o combate. Cada um pensando na sua mãe. Na sua vidinha boa. Agora em cheque. Mas, pronto para não ser desmoralizado.

Os sadraques. Todos se levantaram. Tomaram posição de ataque. E vieram. Passos retumbando no chão batido da rua. O América. Viu. Analisaram a situação. Ninguém correu. Nem um passo. Formaram um pelotão. A batalha se aproximava, forte.  Braços em posição de luta.

Tensão no ar. Nenhuma ave se atrevia a piar. As janelas das casas se abriram, míopes, tentando ver o que ia acontecer. Sangues, hematomas e quebraduras. O América parado. Os Sadraques avançando. Dez, vinte, trinta passos. A tarde agonizava.

À passada número 50, Sadraque ergueu a mão direita. Para o seu grupo. Que todos ficassem quietos.  Respeitassem?  Seu grupo foi retornando à calçada onde estavam anteriormente. O América permaneceu firme. Só seguiram, rua adiante, quando constataram que os  sadraques todos estavam  sentados, de volta. Silenciosos.

A partir dali, alguma coisa se trincou. Não eram mais os mesmos. Os passos ficaram mais firmes. O olhar mais agudo. O raciocínio mais leve. Enfrentaram o poderoso e infernal Bangu de igual para igual. Lairton fez seu nome com defesas inesquecíveis. O meio-de-campo, formado por Edilson e Edvaldo,  brigou como nunca, cada bola era um prato de comida. O ataque, com Ney e Robertson,  exigiu demais do goleiro adversário.

Foi o primeiro zero a zero da história do Bangu. E a primeira vez que o Bangu não brigou em campo. Nem antes, nem depois do jogo

Na volta, envoltos na poeira e no cansaço, ao contarem  para Dona Vina ela deu uma ajeitada no avental e sorriu: Sadraque já deve estar namorando, procurando emprego. Talvez não queira mais encrencas de rua. E, e com uma piscadela, espetou um enigma no olhar de todos. A vida, como o jogo do futebol, é imprevisível, meus amigos. E saiu, rindo sozinha, satisfeita com o passo que a molecada da sua rua dera. Em direção ao infinito.