Cada um no seu quadrado

A pancada de facão  no balcão da venda já avisava que o James, seu terceiro filho, tinha aprontado de novo. Seo Bastião Vendeiro, experiente na vida, já foi tratando de acertas coisas com o reclamante.

Não era por mal, o rapaz tinha até boa vontade, mas já se acostumara com as distrações desastrosas. Tanto que ficava o máximo que podia sentado, ao  fundo, ocupando uma mesa antiga cheia de papeis. Rabiscava, lia, calculava, aleatoriamente.

O pai preferia assim. Era desta forma que Seo Bastião tocava a Casa Londrina, ali no início da Rua Tâmisa. Local preferido dos sitiantes e chacareiros para comprarem na caderneta. E acertarem a conta no final do ano. Após a colheita.

Lutando contra esta situação íntima, James se debatia. Via os irmãos mais velhos desenrolando situações, comprando e vendendo, conversando com todo mundo, fazendo a Venda girar pra frente.

Vez em quando se esquecia. Ia pra frente. Era pá e bola. Confusão. Peso errado. Troco a mais ou a menos. Troca de mercadoria. Alguma coisa sempre dava errada. Dói mais é este silêncio, já nem me dão mais bronca. Desabafava riscando qualquer   papel de embrulho à frente.

Este menino deve ser encaminhado para algum trabalho diferente, não sei qual é, dizia o pai, enquanto ia tramando deixar a Venda para os dois irmãos mais velhos, por demonstrarem habilidades no mundo dos negócios.

Só não posso causar um trauma na cabeça dele, pensava enquanto, no final do dia, experimentava uma cana colorida na madeira emburana. Vou com calma. Que o mar não está pra jacaré.

Só não contava que Omar, o filho mais velho, numa reunião da Associação Comercial conhecesse a filha de um dono de rede de supermercados. Foi num fechar e abrir de olhos. O pai dela levou o futuro genro antes mesmo de correr os papeis no cartório. Seria seu braço direito. Lá se foi.

Tudo bem, ainda tenho o Aristeu, formado em Contabilidade e Técnica de Vendas para continuar a história da Venda.  Assim, Seo Bastião passou um ano tranquilo. Foi quando outro rabo-de-saia-com-pai-endinheirado se interpôs aos seus planos. Aristeu bateu asas num Dodge Dart para ser executivo de um rico industrial do ramo atacadista.

Não posso reclamar da vida de jeito nenhum, Seo Bastião  pensava enquanto alisava  o balcão várias vezes, com o antigo pano de sacaria de algodão. Eu levo até onde der. Também, quando eu descobrir  a vocação do James, não preciso nem abrir mais as portas quando me cansar disso aqui.

Uns dizem que ao ver a situação do pai, outros falam que por ver o caminho livre dos irmãos, James se alvoroçou a tentar  novamente atender no balcão da Venda. Coitado, só aumentava o serviço paterno que tinha de consertar, corrigir as trapalhadas que ele fazia. Ao final de cada trapalhada, sentia-se jogado de novo aos seus papéis.

Quem será o culpado de tudo isso? Resmungava procurando culpados. Olho gordo, mal olhado, entrava em pane. Queria vingança. Ah se descubro quem anda me atrapalhando. Chegava a ter pesadelos. Fregueses sem rostos entrando na Venda para levá-lo para a fogueira da praça. Acordava molhado de suor.

Uma ideia das mais idiotas brotou-lhe da cabeça, era assim que ele comentava anos depois. Encomendou pelo reembolso postal, de uma livraria de obras ocultistas, um Manual das cem melhores vinganças.

No  intervalo entre as chegadas dos fregueses, corria ler. Se arrepiava. Não aceitava aquilo. Era um horror. Mas, à noite, depois de três ou quatro confusões que cometia durante o dia,  caía em um estado desesperador. Procurava, entre os moradores de perto, os culpados pela sua incapacidade de tocar a venda.

Depois de selecionar uns quatro ou cinco suspeitos de mal olhado ou bruxaria contra si, James  corria fazer, de barro, umas estatuazinhas. O Manual garantia. Se desse uma martelada nos bonequinhos a pessoa do olho maldoso ia sofrer miseravelmente. Era só  modelar o boneco à meia noite, deixar solidificar até às seis da manhã, e, bem neste horário, chegar a marreta, espatifando-a. Os donos do mal olhados pagariam caro. Até com a própria vida.

A primeira parte, construir os bonecos, ele fazia cheio de entusiasmo. Mas, às três horas, despertava, suando, desesperado, arrependido. E corria até uma bacia d`água para lavar a cara, então   desmanchava todos os bonequinhos. Pedia perdão perdão perdão.  Noites e noites passou neste modela-desmancha-sem-fim.

A coisa seguia sem melhoras. Seo Bastião não acreditou quando uma terceira moça adentrou a venda. Não foi feitiço, foi uma paixão sem fim. James e Maria da Estrada do S. Moradora vizinha do Ribeirão Alegre.  Ela tinha vindo entregar, sozinha, metade da colheita daquele ano.

Pânico. As duas famílias foram contra tal namoro e união.  Seo Bastião não punha fé, ia ser um casal muito atrapalhado. Mesma coisa dizia Seo Carmelo, pai da moça. Os dois pais não davam dois meses para o fogo se apagar. Nem se intrometeram. Deixaram que ambos os noivinhos desistissem por si. Tava na cara.

Vai nesse fiúza. Corações  apaixonados têm suas próprias lógicas.  Numa quinta-feira, logo de manhâzinha, combinados os dois. James pegou o Jipe da Venda e partiu para a casa dela. Ia roubá-la. Iam fugir.  Ele, que só sabia dirigir até a segunda marcha do veículo, demorou muito, um tantão,  para chegar à cabeceira do sítio do sogro.  Atrasado duas horas, será que ela está muito brava?

A noiva ainda estava fazendo a segunda mala. Os pais dela, ao verem a situação, continuaram a rotina agrícola do dia. Semearam a horta. Trataram dos porcos. Apartaram as vacas. Deram milho aos gansos. Talvez até à tarde, o casalzinho estivesse pronto para partir ou desistissem da aventura, diziam nos instantes em que amolavam as enxadas.

Acabaram se esquecendo, na lida dura da roça, e foram caminhando cada vez mais longe para executarem as tarefas.  Tinham de buscar ramas de mandioca na palhada, nos fundos da propriedade. Nem bem encheram os balaios, perceberam que se não andassem depressa, na volta pra casa, iam ser pegos por um chuvaréu. Uma nuvem carregada dera sinais atrás do monte do sítio do Knupp. Uma tempestade vem aí.

Quase tomaram a chuva. Quando chegaram cadê o casalzinho? Tinham partido no Jipe.  O pai tranquilizou  a mãe, eles não vão tomar chuva, não.  Daqui até a cidade é no máximo meia hora.

O que ele não sabia é que James só dirigia na segunda marcha. E a chuva acabou pegando os noivos antes da metade da estrada. Bem no Matão. O chuvisco virou chuva. A chuva virou temporal. O temporal virou tempestade. A estrada, lamaçal.

Apavorado James acelerava e freava. O jipe rabiava. Dançava.  Rodopiava. Riscando a estrada de terra. Abrindo valetas. Até parar num choque contra uma peroba de 200 anos que não tinha nada com isso.

James nunca tinha visto uma onça. Pois a moça se transformou em uma. Num golpe, arrancou o noivo do assento. E manobrando com maestria desatolou o Jipe. Encarou a chuva, a estrada, o barro. Chegaram à cidade.

James procurou por vários dias quem era o terrível dono do olho gordo que lhe mandara uma tempestade no caminho do rapto de sua noiva. Ela assumiu o controle da Venda. Quando descobriu os bonecos vingativos derreteu todos e fez bolinhas para atirar no estilingue. Gostava de derrubar manga rosa do pé.

Seo Bastião hoje está mais tranquilo. A nora cuida da Venda. E James, depois que descobriu que cada um no seu quadrado,  cuida da contabilidade. E só faz bonequinhos de argila para usar como peso para papeis.