A noiva fantasma ou uma noite de terror na Avenida

João Juvêncio tinha demorado muito para conquistar o coração de Adélia. Desde as aulas no Tio Patinhas. Continuou tentando na Yolanda. Depois ela fez científico. Ele, Contabilidade. Abandonou no segundo ano.

Engraçado que os dois só entraram num acordo quando frequentavam escolas diferentes. E foi assim. Se demorou a conquista. Também demorou o namoro. Anos a fio, João Juvêncio montava em sua bicicleta Barra Dupla nas imediações do Hospital Rural e descia toda a Avenida, até chegar à casa dela, lá na Colônia do DER, uma fileira de casas amarelas de madeira, moradas dos trabalhadores que faziam a manutenção da Rodovia.

Os dois sonhavam com o noivado. Mas, enquanto ele não conseguisse um trabalho. ia sendo difícil, tanto que Adélia já estava pensando em lançar-se ao mercado de trabalho para concretizar este sonho. A sorte foi sorriu para ele quando na Tapeçaria Londres surgiu uma vaga.

A partir dali, deu-se início a sua carreira de grande estofador. Todas as fábricas queriam contratá-lo porque em seu silêncio e concentração, João Juvêncio produzia muito e com qualidade. Ninguém sabia é que João Juvêncio tinha estas qualidades porque ficava sonhando acordado com sua doce Adélia. Com isso, descontava nos produtos toda a sua ânsia de amor.

Lá pelas tantas, marcaram o noivado. O tempo voou como uma cegonha para o casamento. Para preencher as pontas entre o noivado e o matrimônio, João descia todo fim de tarde-boca da noite para casa da sua doce Adélia.

Descendo a avenida de bicicleta, observava com mais atenção os locais que tinham alguma relação com Adélia, sua amada. A Cantina Itália, onde tomariam o ônibus para a lua-de-mel. A Farmácia Paraná, cujo balconista era o Nhô Belo, dublê de farmacêutico e locutor de rádio. No programa dele, costumava oferecer uma música para ela.

O cinema, o Cine Ipiranga. A quantos matinês assistiram juntos? Juntinhos. A Casa das Novidades. Comprara lá o primeiro presente para ela. Dois metros enfestados de fazenda preta de bolinhas brancas. Ela fez uma saia rodada. Era a moda na época da novela de rádio, O Direito de Nascer.

E assim pedalava a sua vida, rodando em sentimentos que faziam sua cabeça voar. E o coração até esquecer de bater.
Depois, dava uma paradinha obrigatória, em frente à Oficina do Bechara. Uma oficina diferente, pensava ele. No pátio, só tinha carros descolados. Karman-ghias. Bel-cars. Studebackers. Cadilacs. E outros modelos parecidos com os automóveis usados pelos galãs nos filmes.

Olhando o pátio da oficina, sonhava com o dia em que iria dar uma volta, talvez no dia do casamento, com um destes carrões. Ele e Adélia. Pela city. Todos olhando. Ele, jovem marido, bigodinho ao vento, usufruindo o saboroso status de invejado.

Chegou a semana do casamento. Os dias não corriam. O relógio, freado. A segunda-feira demorou uma eternidade. Tudo se arrastando, o tempo era uma tartaruga. Parecia que a órbita da Terra havia se alongado além de Júpiter.
Enfim, chegou, a véspera. Tão sohada. De tão nervosos, nem conseguiam conversar. Muita gente entrando e saindo da casa dela, uns trazendo presentes comprados no Pavilhão dos Vidros, outros trazendo pratos de salgadinhos. O cheiro da carne moída sendo preparada com um gostoso tempero anunciava a grande festa. As grades de tubaína na varanda do quintal.

A mãe de Adélia notava o pequeno desespero de João Juvêncio frente ao frege-frege do dia. Demorou, mas criou coragem de aconselhar o futuro genro a se retirar para casa, descansar um pouco. Vai fazer bem para você. Deixe que aqui cuidamos de tudo. Vá tranquilo.

Nunca tinha contrariado uma ordem sequer da sogra. Não seria agora. Malemá beijou a noiva. Esbaforida com tantas preocupaçõe . Desculpa, amor, hoje nem pude te dar atenção. Vai com Deus. Descanse. O beijo selou o último dia do noivado.

Joao Juvêncio, coração nas nuvens, pé nos pedais, engatou sua bicicleta Barra Forte. A viagem seria longa até sua casa, atravessaria toda a cidade, mas levava a imagem de sua amada consigo. Doce Adélia, nós vamos ser muitos felizes. E tome pedal avenida acima, na noite escura que já se aproximava das doze badaladas noturnas.
A bicicleta apaixonada já tinha deixado o Posto Brasil e o Posto Texaco para trás. A Madeireira Paulista, quando o sino da matriz deu a primeira batida. João estava entrando no outro dia. Pedalando quase em frente à Oficina do Bechara, a oficina dos carros dos galãs.

Na sexta badalada, João viu. Inacreditando. O Portão da Oficina se abrindo. Um dos carrões acendeu os faróis. Esperou João passar. E foi suavemente acelerando até ficar atrás da bicicleta. Um arrepio gelado passou por João. Das solas dos pés ao início da nuca. Nunca vi isso, vou fingir que não é nada. Não posso demonstrar medo.
Continuou pedalando. Sem coragem de olhar. O carro continuava atrás dele. Não o ultrapassava. Já estava na Praça Bom Pastor. Eita, só me faltava esta. Insatisfeito. Irritado. O medo de encarar era grande. Vou fingir que estou olhando os pedais.

Sentia o peso do farol na cacunda. Diacho, vou acelerar. O carrão acelerou junto. Tentou virar à esquerda, o carro avançou. Cortou-lhe bruscamente o caminho, impedindo que saísse da Avenida. No Posto Atlantic, pensou em virar à direita e fugir pela Vila Esplanada. Foi inútil. Nova fechada. Por pouco não me derrubam da magrela.

No movimento obrigatório que fez para voltar para a Avenida, teve de olhar. Foi obrigado. Viu sem querer. No banco da frente do carro. Um casal. A noiva dirigia. O noivo de bigode e terno listrado com o braço na janela. Vidro aberto.
Não sobrou uma gota de saliva para umedecer língua e lábios. As pernas perderam a perícia de pedalar. E a noiva, a motorista, trazia caprichosamente o automóvel quase encostado na garupa da bicicleta.

Tanto que João já podia ouvir. Uma risada metálica. Igual das bruxas ou dos fantasmas dos filmes do Cine Ipiranga. Meu Deus, onde estou? Ele tinha perdido todas as noções. Tempo e espaço. A bicicleta foi ficando cada vez mais pesada. Não posso parar agora. Será meu fim.

Encharcado de suor, passou pela Prefeitura. Nenhum guarda. O carro o perseguindo. As risadas o atormentando. Viu como última esperança as luzes do Posto Brucutu. Era a derradeira possibilidade. Antes do final da Avenida. Ia ter de tomar uma decisão.

30 metros de distância do Posto, deu um galeio na bicicleta, como quem joga um sofá no alto da pilha, e aprumou para dentro do Brucutu. O segurança que estava dormindo, deu um pulo de susto. Com um cassetete na mão, viu João mais pálido que um fantasma. Em pânico, gritou por socorro. Assoprou com tanta força seu apito que todos os guardinhas da cidade correram para lá.

O carro passou direto sem alterar a velocidade. Manso, suave. A noiva olhando para o Posto, fez lhe um sinal. Prosseguiu até o final da Avenida. Ao Cemitério. Sem parar. Deu para ver o brilho, a luminosidade do choque contra os grandes portões. O silêncio da noite pesou. Não houve barulho. Nenhum som.

João e os guardinhas não se sentiram em condições de irem verificar o ocorrido. Deixaram para o outro dia. Acharam conveniente.

Sem conseguir dormir, esgotado, João se levantou cedo. Enquanto não tirasse aquela história a limpo não ficaria em condições de se casar. Bem no dia, acontecer isso, é pra acabar. Pedalando sua magrela, boca ainda seca. Parou uns cinquenta metros antes do cemitério para assuntar. Botar reparo.

Não viu nada errado. Foi tomando coragem. Se aproximou. O cheiro de velas vinha com o vento. Esquisito, o portão está intacto, inteiro. Pelo brilho do choque de ontem era até para ter derrubado o muro todo. Era como se nada. A cabeça de João rodava. Pensamentos atropelados. Que foi isso, meu pai? O que aconteceu comigo, ontem?

Não tinha ficado nenhuma pista. Era melhor retornar. Procurar alguém para conversar. Descer a Avenida solteiro pela última vez. Ao virar a bicicleta, o vento soprou. Um pedaço de véu de noiva saiu do boeiro. Dançou no ar e veio se enroscar nos raios de sua bicicleta.

Estava sozinho. Não teve vergonha de gritar o grito mais medrosos de sua vida. Deu uma pedalada tão forte para fugir dali que o pedaço de véu se desgrudou e retornou para dentro do boca de lobo.
O desespero e o medo pedalaram por ele. Avenida abaixo. Para onde estou indo? Ainda não tinha ninguém na rua. Comércio fechado. A bicicleta só parou, sozinha, depois da Fábrica de Sal. João olhou estupefato. Um depósito de materiais de construção. Cadê a Oficina do Bechara? Não era aqui? O que houve?

Ficou parado por horas. Até o povo chegar. Para indagar. O primeiro que chegou foi o proprietário. Correu perguntar. Não, seo moço, a Oficina do Bechara já fechou faz uns cinco anos, acho que se mudou para Maringá. João sentiu que mergulhava num lago sem saída.

A família de Adélia aguardou por horas a chegada do noivo. Ao meio dia, bateu o pânico, esparramaram a notícia do sumiço do moço. Ele fugiu da obrigação? Indagava uma comadre mais afoita. Foi um corre-corre. Um lufa-lufa atrás do sumido.

Faltava uma hora para a cerimônia. Encontraram João. De terno do casamento com o olhar perdido, fantasiado de noivo, olhando o Dodge Dart do Doutor Júlio Fonsequis. Não teve jeito. Ele só se moveu quando decidiram que seria com este carro que o levariam para a igreja. Por via das dúvidas, o doutor deixou o carro com a família da noiva.

O agora marido ficou em transe durante a cerimônia e na recepção dos padrinhos. Pouco quis saber do bolo com um casalzinho e chantilly nem do pão com carne moída que ele gostava tanto. Estava ansioso. Adélia via que ele não tirava os olhos do Dodge do doutor.

Ia dar meia noite.Os convidados não se retiravam João se desesperando a cada batida do relógio da sala. Pediu a noiva que pegasse a chave do carrão. Que ela dirigisse. Nem se despediram no de acordo da ocasião. Foram subindo lentamente a Avenida. Adélia ainda vestida de noiva. Um bicicleteiro, talvez, saído da casa da namorada, pedalava com força para subir pela Avenida. João mandou que Adélia colocasse o carro bem atrás da bicicleta do jovem. Vai seguindo ele, vai. Adélia deu uma risada sonora. De bruxa. Nuvens de chumbo fecharam o céu.